A morte em Doctor Who (Parte 1)

14-06-2015 15:13

Qualquer que seja a abordagem escolhida, este é um tema delicado. Mais que não seja pelo simples facto de que Doctor Who sempre foi um programa principalmente direccionado a um público mais jovem. E deixo já o aviso de que não vou falar de tudo aquilo de que poderia falar, porque me vou esquecer de algumas coisas e outras tantas ainda nem sequer as conheço.


No entanto o mais recente final de temporada, a dupla Dark Water/Death in Heaven prova que este não é um programa com medo deste tipo de temáticas. Num mundo em que as crianças são bombardeadas com estes e outros conceitos a uma velocidade impressionante desde cada vez mais novas, não é de estranhar que Doctor Who também o faça.


Se querem algo para estranhar, olhem para a série clássica. Olhem para o First Doctor, na sua primeira temporada... e na sua primeira história. Sim, aquela cena icónica, e que muita gente prefere esquecer, em que o Doctor de Hartnell se prepara para matar um homem das cavernas à pedrada, e só é impedido por um dos companions da altura, Ian Chesterton (protagonizado por William Russel).

Pessoalmente culpo esse momento num desaire de argumento, consequência natural de ser a primeira história. Ainda ninguém sabia muito bem o que fazer a série, quanto menos com a personagem, que ainda por cima foi interpretada por um actor de filmes dramáticos e de guerra.


Tirando esse momento, e tendo em conta que só vi os episódios completos do First e Second Doctor e alguns do Third, acho que a morte nunca foi propriamente abordada no programa. Era sempre uma consequência das acções dos vilões, e normalmente usada para os estabelecer como uma ameaça real.
 

E no entanto, desde o último episódio do First Doctor que é um tema muito presente, ainda que não da forma mais óbvia. Porquê? Ora, porque o herói, o protagonista, o próprio Doctor, não morre. Regenera. Aquilo que foi só um mecanismo para lidar com a continuação da série para lá do actor principal, tornou-se numa curiosa forma de lidar com a morte. Ou de a ignorar. Depende do ponto de vista.

Eu acho que, de forma acidental, acabaram por transmitir uma ideia muito positiva de que a vida continua. Não necessariamente para quem morre, mas para as pessoas à sua volta e para quem o vem substituir. Por outro lado é uma forma fácil de simplesmente ignorar o assunto ao mesmo tempo que se diz que toda a gente é substituível.


Ou talvez isto seja apenas pensar demasiado no assunto. Até porque o programa nunca teve problemas em ter pessoas a morrer, incluindo algumas companions e montes, mas montes, de personagens secundárias e figurantes de todo o tipo.


A regeneração, forma simpática que é de lidar com o assunto, é que criou problemas. Primeiro, por aquilo que disse, e depois por causa dos pormenores que apareceram depois. Como o limite de regenerações que os Time Lords têm: um mero detalhe fisiológico, muito típico da ficção científica, que de certa forma limita a personagem mais poderosa das redondezas. E no entanto é também uma forma de criar uma morte verdadeira depois das várias regenerações, mostrando assim que até as personagens que se pensava serem imortais, não o são. Mas mais ainda! Quem controla este limite são os Time Lords. O que significa o quê? Que alguém tem poder sobre quem vive e quem morre.

Interessante a forma como estes pormenores acabam por transmitir ideias complexas ligadas à religião, não acham?


Mas há mais a dizer sobre as regenerações, e aqui o problema vem dos Doctors mais recentes. Primeiro foi o Ninth Doctor, antes de regenerar, a dizer que “every cell in my body is dying”, mas que os Time Lords tinham um pequeno truque, uma forma de “cheat death”. Isto deixa bem explícito que ele pode morrer, e que é isso que está a acontecer, mas que ele pode evitá-lo, regenerando. E logo a seguir deixa bem claro que vai mudar, distinguindo-se claramente do seu sucessor.


O Tenth Doctor, por sua vez, é um caso peculiar. A sua arrogância, às vezes subtil, às vezes óbvia, deu-lhe um medo da regeneração que o faz ter reacções impensáveis: a primeira é evitá-la, efectivamente gastando uma regeneração, ao direccionar essa energia para a sua mão decepada (o que depois cria um Meta-crisis entre essa mesma mão e a Donna, que levou directamente à resolução de um conflito perigoso, mas também ao afastamento da Donna) e efectivamente não mudar; a segunda reacção foi fugir como se não houvesse amanhã, quando confrontado com a sua morte, via profecia dos Oods.

Como que tirou férias! Para ignorar que ia morrer, ou melhor dizendo, regenerar, o que para ele é claramente a mesma coisa. Só isso justifica que quando de facto ouve as quatro batidas, pela mão de Wilfred, e tem que escolher entre salvá-lo e salvar-se a si próprio, tem um momento inicial de raiva e pondera seriamente sacrificar o avô de Donna. É claro que não o faz, mas depois adia o momento e visita todos os seus companions, para se despedir, e diz as lendárias palavras finais “I don't want to go.”. Se isto não é um homem nos seus momentos finais, não sei o que é!


O Eleventh Doctor, por seu lado, foi um Doctor com noção que não tinha mais para onde fugir. Não havia mais regenerações para gastar. De tal forma que a sua morte foi um tema central às suas temporadas! Mas claro que no final a ajuda veio, vinda do céu, através dos Time Lords, que lhe deram um novo ciclo de regenerações. Ou por outras palavras, uma nova vida.


Ainda assim, os instantes pré-regeneração são tocantes porque novamente vemos um homem nos seus momentos finais, a alucinar/lembrar-se da primeira cara que viu, Amy Pond, e a despedir-se de Clara com um discurso emocional de mudança e de enfrentar a morte, mas sempre com a ideia de que quem vem aí é outra pessoa, e de que o Eleventh Doctor vai, para todos os efeitos, morrer, tal como todas as onze encarnações anteriores, para dar lugar ao Twelfth Doctor.

Aquilo que mais fascina é como o assunto é abordado de forma tão disfarçada. Nunca é demasiado in your face, é sempre levado com calma e sem querer obrigar ninguém a tirar conclusões. Apenas mostra as coisas como elas são dentro da lógica daquele universo, e deixa cada espectador a pensar, por pouco que seja.


Melhor que isto é difícil, e é uma das razões que de vez em quando me faz ficar fascinado com esta série: aborda as temáticas de formas interessantes. E estes exemplos que dei aqui são só parte da questão, porque há muito mais a dizer. Voltem para a próxima semana para saber exactamente o quê!

 

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso