Há Natal em Gallifrey? - 'Voyage of the Damned'

07-12-2014 10:32

Este é um episódio trágico. E muito interessante, para além de ser o terceiro especial de Natal consecutivo a envolver robots pouco amigáveis. Aquilo que podemos ver é um Doctor sozinho e a sofrer, mas um Doctor arrogante, uma característica muito específica desta encarnação de David Tennant.

Acaba por ser essa a faceta mais interessante do episódio, juntamente com o fantástico elenco secundário. Uma apreciação do carácter do Doctor, e da sua evolução, bem explícita numa série de momentos.

É que a história, por si só, não é nada de especial. Há um desastre, há robots assassinos, há um vilão demasiado óbvio com um esquema incrivelmente louco, e há um herói a salvar o dia. Banal, até. Um Titanic espacial a ameaçar despenhar-se no planeta Terra é, no entanto, um bom palco para tudo o que acontece ao longo do episódio.

Para começar é preciso reparar na felicidade do Doctor ao reparar que é Natal. A sua paixão por essa altura do ano é mais do que conhecida, e aqui exibe-a em pleno: os sorrisos que acompanham os Merry Christmas! são dos mais genuínos que podemos ver neste Doctor. Ali não há arrogância, não há nenhum sentimento trágico, nem o peso de ser o último dos Timelords, nem nada do género. Há algo tão simples como um homem que gosta do Natal e de ver os outros felizes.

Mas rapidamente se muda a conversa. Os momentos em que acompanhamos o Capitão na sua missão suicida transmitem um estranho sentimento de urgência, de que algo não está bem. E durante os primeiros minutos do episódio, nada disso passa para o Doctor, que anda feliz da vida por entre os convidados.

É nessa altura que começamos a ver como este Doctor está mudado e já caminha para o seu trágico fim. Mesmo quando é bondoso e ajuda uma das empregadas – Astrid Peth, interpretada por Kylie Minogue – não resiste a descrever maravilhas que só ele conhece, com um tom de arrogância subtil, mas presente. A partir daí fiquei mais atento e é impossível não reparar na forma despreocupada como ele anda por ali, a intrometer-se e a mexer em tudo. Com boas intenções, é certo, mas não deixa de ser um sinal claro da sua personalidade.

Se o Ninth era discreto e evitava ao máximo interferir, e o Eleventh se revelou expansivo e dono de uma hiperactividade infantil, o Tenth carrega nos ombros um papel auto-imposto de herói de tudo o que mexa. É um traço comum a todas as encarnações, andar sempre atrás dos problemas, mas a versão de Tennant é das que tira mais prazer disso. Cada acção aleatória e aparentemente descabida parece gritar para que “olhem para mim, o vosso salvador!”. E esse aspecto nota-se, no decorrer do episódio.

Um exemplo fácil é já depois da nave ser atingida pelos meteoros, quando uma das personagens – Rickston Slade, a personagem mais desagradável de sempre – questiona a autoridade do Doctor, que podia ter dado muitas respostas, mas que escolhe pôr uma cara séria e um olhar frio e dizer ao tipo exactamente quem é, que idade tem e de onde vem. É um momento intenso que funciona muito bem e que realmente põe Slade no lugar, mas é a marca distintiva de alguém demasiado habituado a ser o herói. Ou a mandar.

Só na época de Peter Capaldi é que o Doctor se vê confrontado com a sua faceta de oficial de guerra, mas essa é uma característica já muito antiga. Traços do soldado que foi o War Doctor de John Hurt? Não sei, mas todo este episódio é um testemunho, talvez o primeiro, dessa sensação de superioridade que iludiu o Tenth Doctor perto do final da sua vida, como pudemos ver em The Waters of Mars, já pouco tempo antes de regenerar.

Mas nem só de arrogância se faz um especial de Natal! O elenco secundário tem muito tempo para brilhar, e chega a ofuscar o Doctor em alguns momentos: os Van Hoff, o casal obeso, são adoráveis e intrinsecamente simpáticos e ingénuos; Bannakaffalatta, o pequeno alien vermelho com um segredo embaraçoso, é encantador; Rickston Slade, já mencionado, é verdadeiramente desprezível; Mr. Cooper está sempre deliciosamente errado quanto à história terrestre; Alonso, o novato da tripulação que se revela um dos heróis; e Astrid Peth, a empregada de mesa que só quer ver um céu diferente daquele que conhece.

Todas elas estão bem interpretadas e utilizadas, de forma a criar empatia (ou uma profunda antipatia) com o público da forma mais rápida possível. Só assim é que as suas mortes – os Van Hoff, Bannakaffalatta e Astrid – têm peso suficiente para não parecerem gratuitas, mas sim heróicas.

E isto é interessante. Estas personagens quase que servem de contraste à personagem do Doctor, que do topo do seu poder de Timelord já não vê a beleza das coisas simples como Astrid, nem consegue sacrificar-se da mesma forma que Bannakaffalatta, Astrid e Foon Van Hoff. Também já não confia nos outros como Alonso o faz. Eu sei que estou sempre a bater na mesma tecla, mas tudo neste episódio gira em torno deste mesmo assunto.

Está de tal forma acentuada que, depois de vencer o vilão, ou melhor, de ver Astrid a sacrificar-se para vencer o vilão, usa dois dos robots assassinos, os Hosts com forma de anjo, para ascender ao nível superior da nave. Ele é literalmente levado para cima pelos anjos. Não dá para ser mais óbvio do que isto.

E no fim não lida bem com ter perdido Astrid. É uma derrota pessoal que sofre na pele da mesma forma que depois o vemos sofrer com a morte de River Song (ainda que não sejam personagem comparáveis!): ela morreu, mas ele ainda a vai salvar de alguma forma, mesmo que isso signifique não a trazer propriamente de volta, e tem um acesso de raiva quando não o consegue fazer como era suposto.

É preciso Mr. Cooper ter um momento de sapiência no meio de tanta mortandade, para que o Doctor se aperceba do caminho que começou a traçar, quando lhe diz que não escolheria Slade para sobreviver, mas que se pudesse escolher, isso faria dele um monstro. Sem saber, este velhote simpática está a confrontar uma encarnação do Doctor que quer, mais do que tudo, ter controlo sobre quem vive e quem morre. Um Doctor que tenta ser uma divindade mas que se torna lentamente num monstro.

Ainda por cima um monstro que não cumpre as promessas que faz. Pode ser fácil de ignorar, no meio de tanta carnificina (de uma nave inteira, o Doctor só salva três pessoas), mas ainda é mais fácil perder a conta à quantidade de promessas que o Tenth faz, de que tudo vai ficar bem, de que vão todos sobreviver, de que volta para ajudar, de que isto e de que aquilo. Prometer é fácil. Já cumprir, como se pode ver, nem por isso.

Mas mesmo com tudo isto, não deixa de ser um (bom) episódio natalício, que espelha bem a paixão do Doctor por esta festividade. É que apesar da sua arrogância e do rasto de morte que é deixado na nave, o Doctor salva o dia e proporciona momentos não de felicidade, mas de realização pessoal: Astrid vive de forma emocionante durante algumas horas, por exemplo. Bannakaffalatta e Foon têm oportunidade de mostrarem o quão corajosos são, e ambos morrem satisfeitos por saberem que estão a salvar as pessoas de que gostam. E Mr. Cooper recebe a maior prenda de todas, ao sobreviver e ficar na Terra, rico, com a ajuda do Doctor, em vez de ir parar à prisão, por ter mentido quanto às suas qualificações.

Por muito que o Tenth tenha sido arrogante e deixado a sua personalidade descambar, nunca deixou de ser aquilo que todos esperamos que ele seja: o Doctor.

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso