Vida de companion

28-02-2016 16:18

 

Os companions são essenciais para Doctor Who. Isto, pelo menos, ninguém pode negar. Servem de contraste e de complemento para o Doctor. São substitutos ficcionais da audiência, que nos permitem ter um elo familiar com quem partilhar a estranheza que sentimos com aquilo que estamos a ver e a descobrir.

Mas estes papéis conseguem ser, com alguma frequência, bastante ingratos. Afinal, o programa chama-se Doctor Who, e o protagonista, ao fim do dia, é o Doctor, de uma maneira ou de outra. Não interessa que muitas vezes sejam os companions quem fica com o peso e a responsabilidade emocional do episódio, e que até acabem por ser tão ou mais fulcrais do que o Doctor.

Lembram-se de quem é que derrotou uma frota de Daleks, no final da temporada com Christopher Eccleston? A Rose. E quem é que andou pelo planeta a arranjar forma de salvar o Tenth Doctor? A Martha. E quem é que conseguiu arranjar uma solução quando duas versões do Tenth Doctor não conseguiram, juntos? A Donna. E quem é que fez com que os Timelords fornecessem um novo ciclo de regenerações ao Doctor? A Clara, a mesma que antes já tinha saltado para a própria linha temporal do Doctor para salvar todas as suas encarnações.

Podia continuar, mas estão a perceber. Os companions não deixam de ser personagens que ficam na memória, já que normalmente acompanham o Doctor em vários episódios, sem dúvida, mas são facilmente relegados a um papel secundário. O que é fácil de compreender, com uma personagem tão carismática como o Doctor por perto, especialmente tendo em conta a longa linha de actores carismáticos que o tem representado.

 

Mas questiono-me sempre se esta visão que se tem dos companions corresponde à realidade. Serão mesmo personagens assim tão secundárias, relativamente ao Doctor? É que ainda por cima o programa tem mudado de tom, ao longo dos últimos anos, e o Doctor é cada vez mais uma personagem quase mítica, imbuída de uma quase-omnipotência que o põe acima de basicamente todas as outras personagens que possam aparecer.

Isto significa que os companions têm vindo a ganhar mais relevância, ao mesmo tempo que o papel do Doctor, sem nunca deixar de ser o protagonista real, se encosta mais às cordas e deixa as outras personagens lutarem no centro do ringue. O Doctor continua a chamar a maior parte das atenções, e nunca deixa de participar na acção, mas com um papel muito mais passivo, em termos do seu papel na estrutura da história.

No entanto isto tem uma consequência bastante curiosa. Basta pensarem um bocadinho, e olharem para a lista de companions (desde que o programa voltou), e vão encontrar um padrão bastante engraçado: os companions vão-se tornando cada vez mais parecido com o Doctor. “Ah”, dizem vocês, “lá está aquele palerma a referir-se à Clara para generalizar uma ideiazinha dele”. Desenganam-se! Este texto pode ter começado exactamente dessa forma, mas no entretanto já me lembrei de uma quantidade enorme de situações!

Comecemos pelo princípio: Rose. Para muitos, ainda a sua companion favorita, por ser tão próxima de uma pessoa normal. E para uma geração inteira, a pessoa que acompanhámos na nossa descoberta de Doctor Who. Bastou uma temporada para, numa situação de perigo, olhar para o time vortex, desfazer uma frota Dalek em pó, e tornar Jack Harkness numa criatura imortal. Ela descreve o que vê, e o que diz o Doctor? “That's what I see. All the time. Doesn't it drive you mad?”.

 

Ou seja, uma rapariga normal que começa a viajar pelo Doctor. Apercebe-se cada vez mais da sua natureza alienígena, mas nunca o percebe realmente, por ser algo tão distante para ela. Como é que ela pode saber o que é viver 900 anos? Ou saber o que é ser testemunha de tais atrocidades, que prefere chacinar uma raça inteira, juntamente com a sua própria raça, do que permitir que essas atrocidades continuem? Não pode… A não ser que consiga, literalmente, ver o que o Doctor vê, da forma que ele o vê.

Já para não falar de que mais tarde se torna ela própria capaz de viajar entre dimensões, e acaba a salvar o dia, quando o Doctor não o pode fazer.

Então e a Martha? Com o Doctor preso e o Master a dominar o planeta, é ela que arrisca a vida para levar a cabo um plano possivelmente suicida para resgatar o Doctor e salvar o dia, tudo duma assentada. E mais tarde, acabamos por descobrir, torna-se basicamente numa defensora do planeta Terra. Soa familiar?

O caso da Donna, esse, ainda é mais especial. Uma companion que se torna meio-Timelord, ainda que apenas durante algumas horas. The DoctorDonna. E novamente uma pessoa simples, que durante a sua estadia na Tardis teve imensas dificuldades em lidar com alguns dos actos do Doctor, como se pode ver em The Fires of Pompeii. No final, torna-se ela própria numa espécie de Doctor e, ainda que desta vez mais metaforicamente, consegue ver o que ele vê. Fica a percebê-lo melhor, mas infelizmente tem também que perder todas as suas memórias dele, para a sua segurança.

 

Dois casos mais subtis são o de Amy e Rory, os companions por excelência do Eleventh Doctor e que muito sofreram ao longo dos episódios. Com o Rory é mais fácil, já que ele morre e se torna numa réplica de plástico com as suas memórias, e defende a Pandorica Box durante 2000 anos. Um tipo normal que ganha uma espécie de imortalidade e vive tanto tempo quanto o Doctor. Haverá melhor forma de perceber as explosões emocionais do Doctor?

Já a Amy é mais complicado. Como personagem, não acho que tenha tido uma evolução significativa… Mas há um episódio importante na sua história: The Girl Who Waited. Dessa vez, o Doctor e os dois companions aterram num planeta atacado por uma praga e com fortes medidas de segurança que deixam Amy presa e longe do alcance do Doctor e de Rory, que voltam para a salvar, mas… O tempo para ela correu a uma velocidade diferente. Amy está mais velha, construiu a sua própria sonic screwdriver e tornou-se, para todos os efeitos, numa badass. A parte mais importante? Fez isto tudo imersa em solidão, um sentimento demasiado conhecido para o Doctor.

No final, esta Amy mais velha é, de certa forma, abandonada pelas pessoas que ama e em quem confia, uma comparação fácil com o que o Doctor enfrenta sempre que abandona um companion ou por ele é abandonado, seja de que forma for. Uma reviravolta interessante no mínimo, especialmente tendo em conta o quão rapidamente esses acontecimentos são esquecidos. Nem sequer parecem ter qualquer efeito em qualquer uma das três personagens! Problemas da era Moffat…

Mas adiante, que o caso mais flagrante está aí à porta. Clara Oswald. E até começa muito antes daquilo que a maior parte das pessoas pensa. Digam-me, se tiverem que descrever o Doctor a alguém, como fazem? Uma personagem que muda regularmente de cara e de personalidade, mantendo a mesma essência? Alguém que é possível encontrar, ao longo da série, como sendo diferentes pessoas?

Tal como acontece com a Clara de Asylum of the Daleks, a Clara de The Snowmen e a Clara “original”, apresentada em The Bells of Saint John? Pois é. Ainda o Doctor não tinha noção de quem ela era, e já nós podíamos ver, se estivessemos com atenção, paralelos interessantes entre as duas personagens.

 

Mais perto do final, quando começou a acompanhar o Twelfth Doctor, essa mudança começou a tornar-se mais óbvia, especialmente depois de lhe morrer o namorado, Danny Pink. Aí conhecemos uma Clara manipuladora, que facilmente tomava a liderança e que tinha tanta confiança em si própria que não hesitava em pôr pessoas em situações de risco. Até ela própria. Na realidade, começou a tornar-se tão parecida que o próprio Doctor, mais do que uma vez, sentiu a obrigação de lhe dizer para ter cuidado com aquilo em que se estava a tornar: ele.

Nem falo dos vários episódios em que este paralelo é acentuado de forma explícita, como Flatline. Fiquemos por aqui!

Além destes casos existem outras personagens que talvez valha a pena mencionar, sendo River Song a mais óbvia. O único problema é ela não ser bem uma companion, e ela ser como é por causa do Doctor, mas de forma bastante indirecta.

Já Adam, que acompanha Rose e o Ninth Doctor numa única viagem, talvez seja mais relevante. A sua sede de conhecimento e de fortuna, aliada a uma certa imaturidade e irresponsabilidade, levam-no a ser expulso da Tardis. Mas o que é que ele fez realmente? Viu-se num sítio novo e aproveitou-se disso da melhor forma. A sua motivação, lá no fundo, não é assim tão diferente da de um Doctor incapaz de não explorar o Universo.

Como último caso tenho que mencionar Craig Owens, que não segue o padrão que acabei de mencionar, mas que serve como o contraste ideal. Todas as outras personagens que mencionei são um exemplo de como o Doctor marca as pessoas que se aproximam dele. Ele muda-as. Estar perto dele, muda-as. Também as põe em risco com bastante frequência, mas muda-as. Por vezes não se apercebem até ser demasiado tarde, mas nunca demoram assim tanto tempo quanto isso a aperceberem-se das mudanças.

O Doctor é uma personagem tão forte, com uma personalidade tão carismática, e que representa algo tão larger than life, que viajar com ele é uma versão suave daquilo que Rose faz: compreender o Universo, e a vida, de uma forma nunca antes imaginada. O que também acontece aos espectadores, muitas vezes em paralelo com os companions.

A excepção é Craig, que continua a ser exactamente a mesma pessoa, no início e no fim dos episódios em que aparece. E a minha teoria é simples: é a única personagem, das que mencionei, que quando o Doctor lhe aparece na vida, ele já está satisfeito. Vive a vida que quer, da forma que quer. As aventuras com o Doctor são uma mudança de ritmo e de rotina que ele consegue apreciar, no fim de tudo, mas não é algo que prefira à sua vida calma e simples.

 

Porque no fundo, qual é o papel do Doctor na vida das personagens que encontra? É um completo elemento disruptivo! É o caos que altera tudo aquilo em que toca, que muitos tentam conter, e que ninguém consegue controlar, por mais que queira. Imprevisível, hiperactivo e um bocadinho por todo o lado. Um caos que atrai pessoas insatisfeitas, por verem que é possível subverter expectativas e fazer algo mais, mas também um caos que as pessoas satisfeitas gostam de ver, mas com o qual preferem não se envolver. É isso que distingue Craig das outras personagens.

Com isto, não sei se ficaram a achar, como eu, que a dualidade Doctor-companion é uma das mais delicadas e essenciais para o programa, mas espero que tenham pelo menos percebido uma coisa: nada na série acontece ao acaso.

 

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso