A lenda do Doctor

20-04-2015 20:20

Com o passar do tempo é normal que o Doctor tenha ganho alguma fama. Tantas vezes que derrotou tantos inimigos, ou ajudou amigos e perfeitos desconhecidos... Afinal já conta com milhares de anos a viajar por todo o Espaço e por todo o Tempo na sua fiel Tardis.

Mas recentemente, e especialmente durante a época do Eleventh Doctor, tivemos esse aspecto em grande plano, com enredo atrás de enredo a colocar a sua fama e a sua importância no centro da acção. E a verdade é que isso originou uma das épocas mais vistas de Doctor Who, com excelentes histórias apoiadas em excelentes actores e uma devoção de toda a equipa técnica nunca antes vista.

E no entanto deu-se aqui um fenómeno curioso. Os episódios cada vez se focaram menos no Doctor. Bem, isso mudou ligeiramente com Capaldi, mas continua a ser mais ou menos verdade. Por muito que as histórias se foquem cada vez mais no Doctor, os episódios fazem exactamente o contrário.

Não é algo muito estranho: desde o Doctor de William Hartnell que a personagem é simplesmente demasiado distante das pessoas “normais” para servir como verdadeiro protagonista. O foco sempre incidiu muito sobre os companions, sendo esse um dos seus grandes papéis, o de servir de ligação para os espectadores. Uma personagem humana, tão perdida e fascinada quanto nós (às vezes até mais, de ambas as coisas), e com a qual nos podemos identificar com facilidade.

A diferença é subtil, mas relativamente fácil de perceber. Basta ver que no primeiro episódio de Matt Smith ele afasta os Atraxi simplesmente ao fazê-los perceber quem é que ele era. Não teve que destruir nada, nem ter nenhum plano manhoso, simplesmente chegou-se ao pé deles e disse “vejam bem quem eu sou, vejam bem se o planeta é protegido, vejam bem quem é que o protege” e “Basically... Run.”. E eles fugiram.

Algo assim era impensável nos Doctors anteriores, pelo menos desde o regresso da série. Tanto o Ninth como o Tenth era Doctors relativamente discretos, que resolviam os problemas nos bastidores. Eram o herói que acompanhávamos, quase tão humano como nós mas com qualquer coisinha a mais. O Eleventh não. As histórias passaram a desenrolar-se sozinhas, com o Doctor a aparecer de vez em quando. O seu papel tornou-se mais secundário relativamente aos episódios, por mais central que se tenha tornado relativamente às histórias.

E porquê? Porque a personagem se tornou demasiado grande. Aliás, isso foi literalmente um aspecto abordado com frequência durante a era de Matt Smith. Já não é possível para os espectadores acompanharem o Doctor a 100% porque ele está mais alienígena do que sempre, mais afastado de nós, mais incompreensível. É mais simples, e mais eficaz, seguirmos alguém cujas acções compreendemos, ou simplesmente vermos o desenrolar da história no geral.

Ao mesmo tempo, como a personagem se tornou demasiado grande, isso começa a afectar o universo de Doctor Who. Os vilões já não querem dominar o mundo, querem acabar com a ameaça do Doctor. E isso faz toda a diferença.

Até porque faz todo o sentido. Estamos a falar de uma personagem que já viveu milhares de anos e que acaba por se envolver em alguns dos maiores acontecimentos da História do Universo. A maior parte deles envolveu derrotar uma ou outra raça ou facção, criando muitos dissabores e muito medo. Como o Eleventh diz em The Pandorica Opens, “[...] just remember who's standing in your way, remember every black day I ever stopped you, and then, and then!, do the smart thing...let somebody else try first”.

Até a existência de River Song é por causa do medo que os adversários do Doctor têm dele. Aliás, os finais das três temporadas de Matt Smith incidem quase completamente no papel do Doctor no Universo. Na quantidade de pessoas que salvou e na quantidade de mundos que fez arder. Nos inimigos que derrotou e nos amigos que ajudou, na enorme quantidade de pessoas que o querem derrotar e na quantidade enorme de pessoas que o querem ajudar.

Mas sempre, sempre, de forma a dar menos protagonismo ao Doctor. Seguimos a Amy, o Rory, a Clara, a River, toda a gente, e acabamos por passar cada vez menos tempo com o Doctor, o que acaba por ter mais um efeito: aumenta a personagem do ponto de vista do espectador. Ao ficar mais misterioso e mais “independente” do nosso ponto de vista, aquilo que faz fica mais inexplicável e mais incrível.

Mas o paradigma voltou a mudar com a mudança para Twelfth Doctor. Depois de tantos resets ao Universo, não foi isso que aconteceu desta vez. O Doctor é que ficou mais discreto. E com isso, a sua importância para os episódios aumentou. Vai ser interessante como é que essa tendência se vai desenvolver na próxima temporada, que tudo indica que vá ser uma das melhores da sempre, com o regresso em força dos two-parters, da Missy, um elenco convidado brilhante, um alinhamento de argumentistas excepcional, e um Doctor mais do que estabelecido.

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso