A morte em Doctor Who (Parte 2)

21-06-2015 10:52

Tema incontornável como é, a questão da morte parece que nunca foi muito directamente abordada na série até bem recentemente. O plano de Missy revelado em Dark Water/Death in Heaven é deliciosamente diabólico e chega ao ponto de ser macabro, quando se ouve um “Don't cremate me!”. Foi um choque e levantou mais do que algumas sobrancelhas no lado dos espectadores, preocupados com o que os seus rebentos andavam a ver.

 

Pois bem, tenho más notícias para essas pessoas. O final da oitava temporada foi apenas a história em que o assunto surgiu de forma tão explícita, porque há acontecimentos tão ou mais horripilantes desde que eu me lembro!

 

Não é difícil de imaginar. A personagem do Doctor está destinada a ter morte à sua volta, de uma maneira ou de outra. E deixando a série clássica de parte, por não ter suficiente conhecimento de causa, podemos começar com o Ninth Doctor de Christopher Eccleston: a sua revelação sobre o que aconteceu na Time War, com a qual ele acabou ao exterminar (eheh) a raça dos Daleks e também a dos Time Lords, de forma deliberada e consciente.

A verdade é que os episódios focam muito mais este problema do ponto de vista da culpa do Doctor e do seu sentimento de solidão, e portanto não me admira que as pessoas se esqueçam que o que ele fez foi cometer genocídio de duas raças inteiras, incluindo a sua própria raça. Num só acto, o Doctor matou, muito provavelmente, biliões de seres vivos, incluindo amigos e possivelmente família.

 

Tudo por uma boa causa, como ele se tenta convencer durante a sua temporada, mas foi um acto que lhe ficou bem pesado nos ombros, como viemos a descobrir pelo aniversário dos 50 anos, com a revelação do War Doctor, uma encarnação que todas as outras tentam esquecer, demasiado envergonhada dos seus actos para pensar em si próprio como Doctor.

 

Mas é ainda com o Ninth Doctor, no seu último episódio, que temos direito a um momento peculiar: Rose, depois de olhar para o coração da Tardis, transforma-se em Bad Wolf e ressuscita o recém-falecido Jack Harkness, além de chacinar uma frota inteira de Daleks. O que é que há de peculiar nisto? O óbvio é que é uma personagem que tem, literalmente, o poder da vida e da morte nas mãos, em oposição ao Doctor, que se auto-proclamou uma espécie de guardião desses conceitos, apesar de, repetidas vezes, se ver incapaz de interferir, por várias razões.

A parte interessante, no entanto, é a ressureição de Jack, que depois disto se torna imortal. As consequências disso são mais do que exploradas em Torchwood, o spin-off de Doctor Who que teve uma vida relativamente curta e algum azar. Algo que o Doctor só descobre depois, já como Tenth Doctor. E qual é a sua reacção?

 

Bem. Aparentemente foi por causa disso que ele o abandonou. E diz que só olhar para ele já é um esforço que tem de fazer. O Time Lord, capaz de regenerar para fugir à morte, um processo praticamente inventado, implementado e controlado completamente pelos Time Lords, tem uma aversão quase patológica ao humano que se torna verdadeiramente imortal. Ironia? Pois!

 

Mas isto não se fica por aqui. O Tenth Doctor tem direito a um dos momentos que eu achei mais arrepiantes em toda a nova série, até mais do que “Don't cremate me!”: Waters of Mars.

Este é o episódio que marca a queda definitiva do messias que é o Doctor de Tennant. O momento em que ele decide que tem direito a vencer, o que quer que seja que isso signifique. Afirma que as leis do tempo são dele, e que vai fazer delas o que muito bem lhe apetece, porque é o Time Lord Victorious! É o culminar de um longo trajecto de arrependimento e aceitação do que se passou na Time War, e não é propriamente o resultado mais esperado.

 

O que ele faz é borrifar-se para as regras e salvar quem não devia ser salvo. Como resultado, altera o futuro da Humanidade. O que é que ele acha disso? Nada de especial, uma vez que é ele que manda. É então Adelaide, a pessoa salva que não o devia ter sido, toma uma decisão e dá origem ao momento mais intenso e arrepiante que eu já vi neste programa: entra em casa, fecha a porta, e enquanto vemos um Doctor sorridente a voltar à Tardis, ouve-se um tiro.

 

Suicídio. Uma morte silenciosa e intencional, de alguém que se apercebe que o messias não é um deus, é um louco, e que tem de remediar a situação, custe o que custar. É um acto corajoso e poderoso, que marca definitivamente o Tenth Doctor. Acabou-se a fuga, acabou-se o jogo, e ele perdeu. O destino não é algo do qual ele possa fugir, tal como faz de tudo o resto. Tem que o aceitar e dirigir-se àquilo que o espera: a sua morte.

Graças a isto, o Eleventh Doctor é uma encarnação que lida muito mal com a morte. Não a sua, com essa consegue fazer as pazes (hum, várias vezes), mas com a dos outros. O medo de perder Amy Pond é extremo. Nunca compreendi muito bem se é por causa da sua genuína aversão à morte dos que o rodeiam, depois de tanto tempo a acontecer o contrário, ou se está relacionado com a estranha obsessão pela sua companion, mas é um facto que faz de tudo para a salvar, de forma mais intensa e direccionada do que nunca.

 

É por isso que é tão interessante que o namorado (e mais tarde, marido) de Amy, Rory Williams, também morra várias vezes e se torne num ser estranhamente imortal e eternamente fiel. E melhor ainda, que a companion seguinte morra duas vezes antes de se tornar realmente uma companion. Pelo menos que ele saiba, porque como descobrimos em The Name of the Doctor, Clara entra na timeline do Doctor, fragmenta-se em múltiplas versões, espalhadas por todo o Espaço e Tempo, e salva o Doctor inúmeras vezes, sofrendo morte atrás de morte.

 

Uma sucessão infindável de mortes para salvar aquele que não morre, aquele que quando ia morrer, ganha literalmente uma nova vida. Inacreditável!

Há tanto mais para dizer que nem sei. O melhor é ficar por aqui, que acho que já deu para perceber a forma como a morte é algo central nesta série e na vida do (mais ou menos) protagonista, o Doctor, seja a sua própria morte ou a daqueles que o rodeiam. O Twelfth Doctor de Capaldi apenas vem reafirmar o tema e trazê-lo para a ribalta, e é a encarnação certa para o fazer: um Doctor mais negro, sem medo das consequências e sem idealismos juvenis. Um Doctor que apesar de ter mais vidas pela frente do que as encarnações anteriores, não tem medo da morte. Seja de quem for.

 

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso