2005: O sucesso do regresso

22-03-2015 14:27

Em alturas de aniversário parece-me importante dar um passo atrás e ver como é que as coisas estão a correr. Aquilo que quero fazer neste artigo é olhar de forma crítica para as razões que fizeram do regresso de Doctor Who, já há 10 anos (!!!), um sucesso.

A série original tornou-se num marco da televisão britânica, sem sombra de dúvida, mas a popularidade – e pelos vistos, a qualidade – foi diminuindo até culminar no cancelamento e hiato indeterminado. O filme com o Eight Doctor de Paul McCann, pensado para fazer ressuscitar a série, não teve o sucesso comercial que se esperava, e tudo ficou parado... Até 2005, quando Russel T. Davies e companhia tomaram as rédeas e (re)criaram um dos programas mais reconhecidos da televisão actual.

Como é que isto aconteceu? Pois bem, vamos começar pelo princípio...

A ideia original

Convenhamos. Quando se parte de uma base forte, tem-se a vida facilitada. E por muitos percalços que tenham acontecido ao longo dos anos, Doctors menos apreciados por fãs, episódios mais fracos ou temporadas inteiras que para sempre ficarão mal vistas, a premissa que deu origem a tudo é francamente genial.

Ainda para mais se tivermos em conta a forma como a premissa evolui de forma relativamente natural, crescendo com o próprio programa. De foco supostamente educativo, com muitos episódios de base histórica, Doctor Who começou por ser um simples programa de ficção científica com um protagonista capaz de viajar no tempo e com um intelecto claramente muito superior ao de um simples humano.

O protagonista resmungão tornou-se numa figura paternal relutante, e com a inevitabilidade da saída do actor principal, arranjou-se algo para perpetuar a série: a regeneração. Muda-se o actor, muda-se a personalidade, tecnicamente mantém-se a personagem. Fantástico! E tudo isto junto, mais o que depois se foi juntando, fazem da premissa base algo tão forte, interessante e original, que o regresso era só uma questão de tempo!

Russel T. Davies

A equipa responsável por cada episódio é certamente enorme, todos eles importantes à sua maneira, mas se há homem que merece ser destacado é Russel T. Davies. A sua óbvia paixão pela série levou-o a tomar o leme do regresso, e o que fez, fez bem! Conseguiu respeitar os oito Doctors anteriores, assim como as ameaças e os ícones da série clássica, ao mesmo tempo que modernizou todos os conceitos, adaptando-os na perfeição a uma audiência muito diferente da que acompanhou a série clássica.

É fácil de ver, ao longo das quatro séries que escreveu, que foi a pessoa certa para o trabalho. As suas histórias, além de terem sempre a sua marca bastante presente, são grande parte da razão para Doctor Who ter o sucesso que tem actualmente.

Christopher Eccleston

A minha razão favorita, como é óbvio para quem conhece os meus gostos whodescos, é Christopher Eccleston, o actor que teve a difícil tarefa de pegar na personagem depois de um hiato prolongado e vários falhanços comerciais. Desempenhou o papel com todo o brilho e tornou-se muito rapidamente no meu Doctor favorito, mesmo antes de conhecer todos os outros.

A experiência de palco, que partilha com outros Doctors e actores da série, fez dele um actor excepcional, muito versátil, e deu-lhe o arcaboiço para aguentar a responsabilidade que lhe foi posta em cima.

O principal da sua actuação foi o brilhantismo com que conseguiu passar a ideia de uma personagem jovial com um enorme peso nas ombras. Um veterano de guerra com um espírito jovem a tentar vencer a inércia da depressão e da auto-comiseração. Resultado? Um Doctor excepcional que em muito contribuiu para cimentar a série.

Billie Piper

Facilmente vista como o elo mais fraco das primeiras temporadas do regresso, a verdade é que Rose tem um papel extremamente importante na série, não só como substituta da audiência, mas também como elo de ligação perfeito com a personalidade alienígena do Doctor.

Por cada momento em que o Eccleston ou o Tennant se mostraram distantes ou pouco compreensivos, Billie Piper salva a situação, normalmente com a sua humanidade e simplicidade.

Isto é logo visível no primeiro episódio do Ninth Doctor, quando este praticamente descreve o Big Eye londrino, em frente ao Big Eye londrino, sem perceber que o está a descrever até Rose o apontar. É uma personagem tão importante, quer queiramos quer não, que quando o War Doctor de John Hurt pensa em usar o Momento, em The Day of the Doctor, para acabar com a Time War, a consciência da arma toma a sua forma, em versão Bad Wolf. E por falar na Time War...

A Time War

Não posso fazer uma lista destas sem apontar a grande mudança introduzida por Davies, e que Moffat já começou a desfazer: a guerra que levou ao extermínio – pensávamos nós e o Doctor – de todos os Timelords e Daleks.

Rapidamente se tornou óbvio que ainda existiam demasiados Daleks, mas os Timelords pareciam mesmo ter ido desta para melhor, e o peso disso assentava duramente nos ombros do Ninth Doctor.

Quais foram as consequências desta decisão? Na série antiga todos os Doctors passaram por Gallifrey – apesar do planeta com esse nome só ter introduzido no fim da era do Second Doctor – e os Timelords eram vilões/aliados/observadores frequentes das desgraças em que o Doctor e amigos se viam envolvidos.

No regresso, isso não podia existir. Ou melhor, podia, mas foi melhor assim. Permitiu a Davies restringir um pouco a série e ir revelando a mitologia e a história de décadas ao longo de um grande intervalo de tempo, em vez de simplesmente fazer algo forçado que continuasse directamente do filme do Eight Doctor.

Facilitou-lhe a vida a ele, mas também aos espectadores, que não precisaram de rever centenas e centenas de episódios antigos para ficaram a par do que se estava a passar.

Balanço entre passado e presente da série

Esta conversa toda está bastante relacionada com esta razão de que falo agora: o equilíbrio entre clássico e novo. Era impossível fazer uma continuação directa de um programa com uma mitologia tão pesado e um universo tão rico, mas também era absurdo ignorar essa fantástica história.

O que Davies e Moffat têm conseguido é gerir muito bem esse equilíbrio. Há criaturas novas, sim, mas também muitas antigas, que normalmente são actualizadas de forma fantástica. Criam-se vilões e personagens novas e assustadoras, mas também se utilizam os antigos de forma eficaz.

Criou-se muito mitologia nova, nos últimos dez anos, mas as referências a acontecimentos da série clássica também são uma constante, agradando assim aos novos fãs e aos antigos. Todos ficam a ganhar.

A “primeira” regeneração

Tudo isto podia ter falhado, no entanto, e em força. Ainda antes dos episódios terem começado, já se sabia que Eccleston saía no final da temporada. A qualidade do seu tempo no papel podia indicar que se ia assim estragar tudo, ao deixar sair um actor sem aproveitar o seu Doctor como deve ser.

Mas os episódios finais são bons, com uma conclusão para o arco narrativo bastante satisfatória, e um momento de regeneração emotivo, tenso, explicativo e chocante o suficiente para os fãs novos, mas também curiosamente nostálgico.

Um momento que podia ter deitado tudo a perder, tornou-se assim num momento icónico da série!

David Tennant

Ligada a esta regeneração está o papel de David Tennant como Tenth Doctor. Pessoalmente, convenceu-me desde os primeiros momentos: não me agradava tanto como Eccleston, mas prometia ser um Doctor interessante. A ideia da regeneração não me chocou, e não tive a reacção que muita gente tem de negar o novo Doctor só porque já não é o Doctor anterior.

E se houve alguma resistência ao início, como tem havido sempre, Tennant não demorou muito a contradizer as más-línguas e a demonstrar-se um bom Doctor, provavelmente o que teve mais sucesso desde o regresso, e que de facto fez um excelente papel.

Por muito que me custe, tenho que confessar que Tennant acabou por se tornar consideravelmente mais importante do que Eccleston para o sucesso da série, ao permanecer ao longo de várias temporadas e ter uma estadia muito similar à de um Doctor da série clássica.

De tal forma que a reacção extremamente positiva que gerou ainda hoje se sente em qualquer grupo de fãs.

Steven Moffat

Quase a terminar, quero dar a razão mais controversa de todas: Moffat. Adorado por muitos, odiado por outro tantos, o argumentista que ficou com o lugar de Russel T. Davies depois da saída de Tennant do papel aguentou-se bem. Aliás, tem-se aguentado. Conseguiu dar uma nova vida a uma série que ameaçava cair na banalidade, e continua a fazê-lo, temporada após temporada.

Teve também a sorte de aproveitar o balanço dado por Tennant e Davies, e conseguiu transformar Doctor Who num fenómeno à escala mundial, não só com qualidade – por vezes questionável – das histórias, mas também com uma inteligência apurada para aproveitar o mediatismo e atravessar fronteiras sem nunca trair a essência do programa.

Quer queiramos quer não, este homem também foi extremamente importante para este sucesso. E isto é sem falar dos argumentos que escreveu quando a série ainda estava a cargo de Davies, como os episódios que introduziram o Captain Jack e a River Song, ou o fenomenal Blink.

Os fãs

Mas para terminar, nada disto seria possível sem o grupo de fãs verdadeiramente extraordinário que a série tem. Antigos ou novos, todos souberam aproveitar cada episódio para discutirem, cada Doctor para criarem facções, e cada pormenor para criar longos e longos debates completamente irrelevantes, simplesmente pela paixão da coisa.

É com orgulho que faço parte da comunidade whovian, para a qual tento contribuir activamente, e é preciso reconhecer que sem nós, a série não tinha andado. Tirando o facto de não ter audiência suficiente para ser considerada viável, sem os fãs, Doctor Who seria apenas mais um programa de ficção científica com uma premissa ligeiramente palerma.

Graças a esta comunidade bastante, digamos, suis generis, a série conseguiu elevar-se acima disso e tornar-se numa força em franco crescimento no mercado televisivo.

Como podem ver, há muita gente a quem agradecer, e muitas razões para ter em conta. Este décimo aniversário, no ano em que a série faz cinquenta e dois anos, é uma excelente ocasião para relembrar tudo isto... E depois desesperar por mais episódios!

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso