Há Natal em Gallifrey? - 'A Christmas Carol'

14-12-2014 15:28

Enquanto decidíamos quem escrevia o quê desta temporada de Especial de Natais este foi-me incumbido com uma nota especial: "Tem o Dumbledore!". Na verdade tem o Michael Gambon mas para uma whovian potterhead é um feito! E verdade seja dita, muitos dos actores britânicos com relevo já estiveram de alguma forma ligados a Doctor Who. Harry Potter também é britânico, com um grande elenco associado, e quase directamente isso implicaria um cruzamento deste dois mundos. Mas nada disto importa para este episódio, cheio de emoções natalícias.

O episódio a sério começa com aquela voz maravilhosa de Michael Gambon em modo narrador a introduzir-nos mais uma vez no espírito natalício que o Doctor tanto gosta. Mas começamos com uma nave a despenhar-se e quem pode fazer alguma coisa para salvar todas as pessoas que lá vão dentro não está com grande interesse nisso. Acontece que Amy e Rory estão nessa nave e  rapidamente chamaram a única pessoa capaz de mudar o rumo daquela situação: o Doctor.

 


 

Que nem Pai Natal desce pela chaminé na véspera do dia, sem barriga ou vermelho, mas destrambelhado como sempre. E apanha uma família a meio de um pedido: verem um elemento da família que há muitos anos se voluntariou a ser criopreservada em troca de dinheiro que precisavam na altura. Mas Kazran Sardick, o dono da moça congelada e o homem que se recusa a salvar centenas de pessoas, foi criado para se tornar num homem rígido e sem compaixão, uma cópia da atitude do pai e nem o Natal o demove para qualquer acto de carinho ou bondade. E neste momento vem uma das frases mais emblemáticas e bonitas de Doctor Who: quando o Doctor pergunta quem é aquela mulher, dentro da câmara de criopreservação, a resposta é “Ninguém importante” e sai uma daquelas deixas que marca “Nobody important. Blimey, that's amazing. You know, in 900 years of time and space I've never met someone who wasn't important!

Ficamos rapidamente sem dúvidas sobre a existência do Pai Natal, que afinal até se chama Jeff e vemos também a rapidez com que este Doctor é atraído para a grande máquina cheia de luzinhas que piscam e controlam tudo à sua volta. Voltar a ver Matt Smith como Doctor começou a dar saudades. Este Doctor que é uma autêntica criança, a saltar para todos os lados, completamente irrequieto, incapaz de se focar numa  coisa em específico, fascinado com as mais pequenas coisas. É tão divertido de se ver.

 


 

Mas quando o não é a resposta por defeito deste Mr. Sardick alguma coisa tem de ser feita. Tão zangado com o mundo, tão Ebenezer Scrooge, até com um pequenote a fazer lembrar o Little Tim, tudo nos levava a mente para outra história bem conhecida – mesmo que não conhecessemos já o título do episódio. A família que procura um Natal mais feliz é mandada embora e com ela aquele intruso estranho que quer mexer e mandar em tudo. Não percebo muito bem porque é que ninguém realmente apanha o Doctor e este acaba sempre por continuar a falar mas faz parte da história, não é?

Mas acaba por sair e aquela cabeça tão cheia de coisas tem de magicar um plano. Quando se combina o aparecimento de pequenos peixes que nadam no nevoeiro – uma das coisas puramente bonitas que há neste episódio, é uma ideia tão adorável e bonita e que fiquei com alguma inveja de viver fora dali – e as músicas de Natal que inundam as ruas há um qualquer click que se faz e a ideia nasce.

Um velho sozinho na sua sala, fria e vazia, com uma lareira pouco acesa enquanto dorme, na noite de véspera de Natal. Mas talvez o som, talvez a luz, acorda-o e mostra-lhe imagens que não queria ver. Uma visão de uma criança com planos, projectos, sonhos, e um pai que o oprime, que só o deixa ver o que ele quer que ele veja. É uma situação tão má, tão triste, tão dispensável. Uma criança é só uma criança e nos olhos de um homem já muito feito que revê a sua infância vê-se a dor que tudo acarreta ao longo dos anos.

 


 

Mas claro que isto não seria suficiente, claro que para salvar todas aquelas pessoas que estão a cair ao mesmo tempo que vamos vendo todas estas aventuras não podia ser algo tão simples como lembranças de como não se querem as coisas. É preciso muito mais. E o fantasma do Natal passado ainda agora tinha acabado de chegar. De um momento para o outro vemos o Doctor passar a ser ama do pequeno Kazran e por muito que tente nem com o psychic paper consegue dizer que é um adulto responsável. Ver o Doctor apoiado numa janela aberta à espera de entrar em mais uma aventura deu-me inveja daquela criança e fez-me lembrar uma porta de um casa de um hobbit, assim grande e redonda.

Mas tudo o que aquela criança quer é ter também ela uma história a contar, quer-se sentir especial como todos merecem e para isso o Doctor tem um certo jeito. Uma sonic screwdrivrer não funciona com madeira mas funciona muito bem como isco porque rapidamente apanhou um pequeno peixe no meio do quarto. Mas atrás de pequenos peixes às vezes vêm grandes tubarões e se alguma coisa falta em DW é impossíveis: temos uma história de Natal inspirada em Dickens com tubarões gigantes que nadam em nevoeiro dentro do quarto de uma criança.

 


 

Mas todas estas aventuras apenas nos mostram uma criança preocupada, carinhosa, que quer salvar o mesmo tubarão que acabou de tentar comê-lo. Nada parece restar desta pessoa no velho rabujento que conhecemos a início, velho esse que está a ver o seu passado a mudar em frente aos seus olhos,  vê-o como num filme, ao mesmo tempo que lhe mudam as memórias de como se passaram as coisas. E ele vive realmente aquilo que se está a passar, está a vivê-la duplamente, em criança e em adulto.

E aqui aparece a mulher congelada que conhecíamos desde o início, Abigail. Foi descongelada para salvar um tubarão assassino e daí nasceu uma nova amizade. Kazran apaixonou-se por aquela voz que encantava os peixes e prometeu, à pressa e sem mais justificações, que a cada véspera de Natal voltariam para estar com ela e viver mais aventuras. Fezzes, cachecóis compridíssimos e coloridos, festas, pirâmides e tantas mais coisas que foram aparecendo nas várias viagens que fizeram os três e que acompanhamos ora por vermos partes ou pelas fotos que Kazran tem guardadas e que nos mostra. 

 


 

Mas há o pormenor que o pequeno Kazsran cresce a cada ano, ao contrário de Abigail e do Doctor, e chegado a homenzinho feito era inevitável o desfecho: apaixonaram-se. Engraçado no meio de tudo é ver o Doctor a tentar dar conselhos amorosos. Ah River, River!

Mas a realidade atrapalha sempre os sonhos e desta vez não é diferente. No início de mais um dia de Natal Kazran acaba por dizer que quer parar, não vale a pena continuarem a viajar todos os anos. Abigail só teria mais um dia de vida e a pergunta que ele põe durante toda a vida é pertinente: “Qual o dia a escolher para ser o último dela?”. É uma ideia muito mais profunda do que aparenta mas quando pensamos bem nas implicações de abrir mais uma vez a cápsula ficamos com mais noção da linha de pensamento que a manteve fechada todos estes anos. É aí que encontramos o fantasma do Natal presente, desta vez com Amy ao leme, mas mostrar que outros sofrem não diz nada àquele coração muito empedrenido.

A mente que não para de pensar naquela que ama em conjunto com a aprendizagem que o pai lhe transmite leva a uma pessoa rancorosa, má e despreocupada. Mas o momento sempre chega, o fantasma do Natal futuro dá uma verdadeira volta na história e põe em contacto dois Kazran, criança e velho.  Voltamos ao inicio, voltamos ao filho que iguala o pai, à raiva acumulada, à vontade de libertar tudo sem querer aguentar mais. E é aqui que a bolha rebenta, ver-se em novo, uma criança que ainda tem tanto para viver e ver naquilo em que se tornou faz finalmente efeito.

Os problemas insistem em aparecer mesmo quando as coisas pareciam resolvidas. Agora os comando precisos não respondem ao novo homem, mudado e bom, tão diferente do que o pai era e programou no filho. Mas é assim que retomamos o elemento em falta: Abigail era precisa e iria viver a sua última noite de Natal, com o homem que amava, agora mais velho do que alguma vez o tinha visto. “We had so many Christmas eves, I think it's time for Christmas day”.

 


 

Verdade é que em retrospectiva este episódio tem muito para contar. É o primeiro especial de Ñatal que não tem nem T. Davies nem David Tennant, essa era acabou um ano antes e agora temos tudo renovado, uma equipa completamente nova a seguir as pisadas da antiga. E conseguiram fazer um belo trabalho. Para além disso podemos ver tudo o que se passa neste episódio doutra perspectiva: para salvar as vidas das pessoas que estão na nave o Doctor não se limita a convencer alguém. De uma forma muito ligeira as pessoas acabam por mal se aperceberem disto mas mais do que convencer houve uma alteração da vida de uma pessoa. O Doctor invadiu completamente as memórias e as vivências deste Kazran, a vida dele foi reescrita numa hora. Talvez isto seja justificável pelo fim que leva mas o impacto disto passa muito ao lado e é uma coisa tão forte.

No fim fica um Especial com toda a emoção possível, altos e baixos que nos deixam completamente agarrados ao ecrã. Todo o espírito natalício que faz o Doctor saltar de entusiasmo está presente e aqui mais do que em alguns dos restantes especiais já que vai buscar as luzes, a reunião de família, as músicas e tudo o que se pode associar a um Natal digno desse nome.