Há Natal em Gallifrey? - 'Last Christmas'

28-12-2014 10:44

Com uma oitava temporada muito criticada, um Doctor ainda muito no início e uma companion que para muitos já devia ter ido para a reforma chegamos a um Especial de Natal que reúne tudo isto. Se Moffatt, Capaldi e Jenna Coleman podia ser uma junção perigosa mostraram o bom que DW tem: com tantas as voltas que o Doctor dá um episódio traz sempre novidades em relação ao último, e o próximo também pode não ter nada semelhante. Aqui tivemos um episódio interessante, mexido, misterioso e acima de tudo bem feito!

Desta vez o artigo vem escrito a quatro mãos. Os dois responsáveis pela secção de escrita aqui do Whoniverso juntaram-se para comentar este novo especial e num formato ligeiramente diferente do habitual. Podem ler isto como se estivessem a assistir a uma conversa entre os dois, a começar pelo Rui. E sim, as nossas conversas de DW são mesmo assim!   

Rui: Para começar, há uma questão que já tenho desde que começaram a sair os primeiros teasers do episódio: que motivo é que se pode arranjar para termos o Pai Natal a aparecer neste especial? Confesso que a solução do Moffat é bastante inteligente, e joga bastante bem com a reutilização de temas de episódios antigos. Gostei particularmente de no final ficarmos na dúvida sobre se já estamos a ver a realidade ou não, tal como o Doctor realçou várias vezes que nos acontece sempre. Mas qual é o seu papel no episódio?

Júlia: Bem, a partir de dado ponto já é muito à volta desse ponto que tudo acontece. Se no início o mais estranho que encontramos é termos o Pai Natal a ser uma das personagens rapidamente tudo se torna mais interessante que isso. Mais uma vez temos invasões de seres estranhos e desta vez a mexerem com o nosso consciente e subconsciente enquanto se servem do nosso cérebro como aperitivo. Num estilo quase Inception deixamos de saber o que é sonho e o que não é, o que é mecanismo de defesa para nos tentar salvar ou simplesmente mais uma ilusão! Eu pessoalmente senti-me muito mais agarrada ao episódio, tentei acompanhar ao máximo, chegar às conclusões possíveis rapidamente – embora soubesse que não era tão fácil quanto isso. Perdi-me? Acho que não! Ao fim de algum tempo DW começa a ser-nos quase natural e mesmo com a capacidade que Moffatt tem de se reinventar já lhe vamos apanhando as manhas. Ou não?

Rui: Sim e não. Concordo que o episódio se torna ligeiramente previsível, a partir de certa altura, embora não tenha sido bem isso que querias dizer, mas acho que o Moffat fez um bom trabalho a agarrar em tudo o que é mais típico nas suas histórias, e a dar-lhes uma volta, sem de facto o fazer. E dessa perspectiva, o Pai Natal é algo novo, sem o ser. É mais um herói mítico que ajuda e de certa forma se opõe ao Doctor – tal como Robin Hood – mas é também uma ilusão (ou não) consciente de si própria, com perfeita noção daquilo que é e não é, por muito que não o revele.

Basta ver que quando lhe perguntam “So, you're a dream who's trying to save us?”, ele responde “I'm Santa Claus! I think you just defined me!”. E é verdade. O Pai Natal aqui não é mais nem menos do que aquilo que significa para cada um de nós, uma ilusão da infância em que alguns acreditam mais do que outros, e que nos dá esperança.

O papel oficial dele, ao longo de todo o episódio, é exactamente esse: ele assinala que as outras personagens ainda estão a sonhar, e na segunda parte do especial é o símbolo da esperança de que tudo ainda pode acabar bem, muito ao contrário do próprio Doctor, na sua encarnação mais rude e desinteressada de sempre, que não quer saber se os outros sobrevivem. Aliás, essa comparação entre os dois é constante, mas achas que consegues decidir-te por um momento marcante que defina essa relação?

Júlia: Há mais do que um e as personalidades de um e de outro estão constantemente a picar-se mas acho que se é para ver uma grande diferença entre os dois não podemos deixar de fora o momento em que o Doctor assumidamente esquece todos os que tinha acabado de encontrar! Aí sim vemos o Doctor que falas, frio e desinteressado, que assim que pensa ter resolvido o qualquer problema que tinha em mãos não quer mais saber daquilo. A mítica deixa de “In 900 years of time and space I've never met someone who wasn't important não parece ter sido dita pela mesma pessoa, pelo mesmo Doctor que independentemente das voltas que dá e que já deu não esquece nem despreza ninguém!

Agora em comparação directa não sei se escolheria um momento. O Doctor tem uma postura essencialmente preocupada com a Clara e isso fica bastante evidente durante todo o episódio, tudo o resto é segundo plano e pouco importa. O Pai Natal é comum a todos, é a esperança que todos têm de sair daquele grande sonho partilhado sem o cérebro feito em papa. Até que desaparece e finalmente estariam perto de acordar. O mais curioso no meio disto tudo, com ou sem comparações, é que não nos podemos esquecer que desta vez o Doctor não vê tudo pelo lado de fora. As coisas não estão a acontecer à volta dele enquanto as resolve: desta vez ele faz parte das vítimas, desta vez ele não tem de salvar apenas os outros mas também ele próprio. Embora o foco seja sempre a Clara. E eu gostei de ver a Clara neste especial. Fiquei desapontada nesta última temporada com todas as peripécias e atitudes estranhas que encheram a série e aqui consegui rever a Clara antiga, como na era Smith, uma Clara mais interessante, mais puramente curiosa e sem ataques de bipolaridade. A vontade de a ver pelas costas anda a ser crescente na comunidade whovian. Será que foi boa ideia mantê-la por mais um bocado?

Rui: Definitivamente não. E o plano provavelmente nem era esse, como dizem os rumores e se pode ver no final apressado e desajeitado. Se ignorarmos esse último sonho de que o Doctor acorda, temos um episódio muito mais interessante, com uma conclusão realmente marcante.

Não é apenas mais um episódio, mas sim o fim de uma era, com uma Clara envelhecida a repetir as acções que teve com o envelhecido Eleventh, no especial de há um ano atrás. É o reencontro de um Doctor emocionalmente desligado – ou que assim o tenta ser – com a sua companion, mais de sessenta anos depois. E ainda por cima a descobrir que ela nunca ultrapassou o Danny, que afinal morreu, nem o próprio Doctor?

É demasiado, até para o Twelfth. As implicações destes momentos finais para a próxima temporada teriam sido monumentais: aqui temos um dos Doctors mais frios e menos empáticos de sempre, a sofrer um dos momentos emocionais mais catastróficos dos seus dois mil anos de vida. O futuro da personagem podia ser muito mais errático e abalado, potencialmente autodestrutivo.

Em vez disso Moffat presenteia-nos com um final que destoa completamente do resto do episódio, com mais uma camada de realidade sonhada para o Doctor e Clara, em que esta não envelheceu brutalmente, e que serve como catalisador para o Doctor voltar atrás e a convidar a continuar as suas aventuras com ele.

Isto não só me pareceu completamente fora do contexto, como não faz completo sentido para a personagem que Capaldi tem vindo a construir. Claro que a ideia sempre foi mostrar que esta encarnação tem um coração maior do que aquilo que aparenta, mas isto é demasiado repentino. Normalmente, este Doctor simplesmente aceitaria que as coisas aconteceram como aconteceram. Ficaria com remorsos, mas faria todos os esforços para que ninguém soubesse. Esta reacção é muito mais típica da encarnação de Matt Smith, que já ficou completamente para trás.

No entanto nada disto estraga o bom episódio que foi este especial. Entre o Pai Natal, os dream crabs, as referências a tantos filmes clássicos de ficção científica e terror (Júlia: “There's a horror movie called Alien?! That's really offensive. No wonder everyone keeps invading you!”) e camadas atrás de camadas de sonhos à là Inception, este foi um especial interessante, menos épico que o anterior, e muito mais discreto do que aquilo que é normal, mas isso faz todo o sentido tendo em conta o Doctor que é e a altura da sua vida em que o encontramos. Agora é esperar pela nona temporada, para vermos se o final apressado compensa, e finalmente temos uma Clara que agrade a toda a gente.

Artigo de autoria de Júlia Pinheiro e Rui Bastos, membros da equipa Whoniverso