Há Natal em Gallifrey? - Os especiais que nunca o foram

24-12-2014 09:49

O especial de Natal é já uma tradição de Doctor Who, desde o regresso de 2005. Ao longo do último mês, eu e a Júlia analisámos todos, e daqui a uns falaremos do deste ano, com Capaldi ao leme.

Aquilo que encontrámos foi uma mistura bastante heterogénea de episódios, que acompanham a evolução da série e de cada um dos Doctors, quase sempre bastante envolvidos com o enredo. Ou seja, bons episódios que fazem a ponte ideal entre uma temporada e outra.

Mas ainda antes de rever The Christmas Invasion, não consegui evitar pensar em como só há dois Doctors a aparecerem em especiais de Natal: o Tenth de David Tennant e o Eleventh de Matt Smith. Com o Twelfth, de Capaldi, em The Last Christmas, estas contas mudam um pouco, mas são poucos, muito poucos!

É normal, esta tradição só surgiu com a série nova, mas... Eu lembro-me de pelo menos um caso flagrante de um episódio muito antigo que pode ser visto como, digamos, natalício: The Feast of Steven, o sétimo episódio do épico de doze partes, The Dalek's Master Plan, uma das histórias mais importantes de sempre de Doctor Who, e que ainda tinha William Hartnell como First Doctor.

Compreendem que foi há muito, muito tempo... Mas será que compreendem o quão notável foi este episódio? Para além de fazer parte daquele colosso de história que mudou para sempre o tom e a face do programa? Provavelmente nunca viram, também, mas eu explico: no final do episódio, o First Doctor vira-se para a câmara e deseja-nos um Feliz Natal. A nós, os espectadores!

É o chamado break the fourth wall. E é incrível. Lembro-me de estar a ver a reconstrução – dos doze episódios, só três sobrevivem, e este não é um deles) – e ficar espantadíssimo, quase chocado, com o que estava a acontecer. E isto no meio de um episódio palerma, que serve de interlúdio à história principal e que só é assim exactamente porque ia passar no dia de Natal, e acharam que ou ninguém ia ver, ou ninguém ia querer continuar a ver a história triste e negra e pesadona de Daleks a planear destruir todo o Sistema Solar.

Como tal, o episódio é leve, cómico, e termina com uma interpelação directa. Fantástico!

Infelizmente, nos outros Doctors não há grande coisa. Talvez uma menção aqui e ali, mas nada de especial. O que é uma pena, já que o Second Doctor deve ter sido extremamente natalício, e o Third dava um Pai Natal quase perfeito, com aquela juba branca e toda a classe da sua capa.

Mas nada que nos impeça de especular, não é verdade? É isso que se faz, quando temos realidade a menos: inventamos um pouco. Neste caso, no melhor dos sentidos!

Do Second Doctor não há muito a dizer, seria uma criança feliz tal como o Eleventh. O Third dava um excelente Pai Natal, sim, mas também seria mais frio em relação às festividades. Era uma encarnação pragmática, de certeza pouco dada a estas coisas.

Mas o Fourth? Saiam da frente! Um jelly baby para ti, e um para ti, e outro para ti, toda a gente leva um jelly baby! Porquê? Porquê é Natal! Wooohooo! E depois o Fifth, mais sério, mas mais amável, seria uma versão mais adulta do Second, quando confrontado com o Natal. Algo que já não aconteceria com o Sixth, que faria um qualquer comentário desagradável antes de fechar a porta da Tardis e seguir para algum sítio onde as pessoas não estivessem tão sorridentes.

Já o Seventh, mais, digamos, fofito (o McCoy não perdoa), andaria por lá todo satisfeito, com o seu ar sábio de Tartaruga Genial. O Eight provavelmente não ia dar por ela, tão ocupado estaria a salvar alguma donzela de algum problema extremamente complicado, ao mesmo tempo que tinha de lidar com a Time War e a sua recusa em participar activamente.

Problema esse que é resolvido pelo Captain Grumpy, o War Doctor de John Hurt, o arquétipo de avô afável, e mais não é preciso dizer, não é? Então e o Ninth? Aposto que iria enfrentar fantasmas e o Cardiff Space-Time Rift, sempre em conversa com Charles Dickens.

Calma. O quê? Isto foi estranhamente específico. Em que raio é que eu estava a pensar. Ah. Estou a ver. The Unquiet Dead, o único “especial” de Natal que só foi mais ou menos transmitido no Natal. Não o era para nós, que Abril não é dessas coisas, mas era para eles, que aterraram em pleno Natal de 1869 e conseguiram esbarrar com Charles Dickens. E depois encontraram fantasmas que não eram fantasmas. E salvou-se quase toda a gente. Natalício o suficiente.

Não foi um especial, mas devia ter sido. O Eccleston merecia. E todos os outros Doctors, verdade seja dita. Mas o mais importante disto ainda é outra coisa. O facto de estarmos a falar disto. De nos preocuparmos com os especiais de Natal, e comigo a especular um pouco sobre o assunto relativamente à série clássica e aos Doctors que nunca os tiveram... É uma tradição imposta desde o ressurgimento da série, e que já se tornou parte icónica de uma temporada.

De tal forma que não custa nada pensar nisso para outros Doctor. Soa-nos normal, não soa? Porque quer queiramos quer não, esta é uma série extraordinária, com mais de cinquenta anos e com vários hiatos mais ou menos longos pelo meio, e que consegue renovar-se quase a cada episódio, mantendo-se fresca e irrequieta. Fico fascinado, de cada vez que penso nisso mais a sério.

Tudo porque há especiais que nunca o foram. Ou melhor, que nunca foram especiais de Natal, porque especiais serão sempre.

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso