Há Natal em Gallifrey? - 'The Christmas Invasion'

03-12-2014 14:16

Em 2005, no ano do recomeço de Doctor Who e infelizmente com Christopher Eccleston acabadinho de sair do programa começa uma nova tradição que já conta com 9 episódios e estamos a aguardar ansiosamente o décimo que nos vai levar directamente ao Pai Natal. Ou pelo menos assim nos parece, por enquanto...

Este primeiro especial de Natal, Christmas Invasion, começa ainda com um Tennant de casaco de cabedal, ainda resquícios de um estilo anterior, e pouco tempo tem para dizer sequer Merry Christmas antes de cair nos braços de Mickey. Depois de uma regeneração complicada é necessário recuperar e infelizmente calha no preciso momento em que Pais Natal andam a matar pessoas pelas ruas e árvores de Natal em modo quase helicóptero tentam matar todos os que estão ao pé do Doctor. Mais um ataque à Terra, desta vez por Sycorax, uns seres estranhos com exosqueleto e tudo. Ao menos quem nos representa enquanto raça é alguém bem nosso conhecido.

 

 

“Harriet Jones, Prime-Minister!”, sim, nós sabemos quem é: uma das personagens com a melhor evolução de todo o universo de Doctor Who. É como personalidade política de pouca importância que conhece Rose e o Ninth Doctor e os ajuda a derrotar os Slitheen, mas é já como Primeira-Ministra que volta a encontrar Rose e o Doctor, desta vez na sua décima encarnação.

Inteligente, assertiva, de pensamento rápido e com um humor inabalável, a sua carreira política ajudou a salvar o Mundo e a moldar a Golden Age do Reino Unido. É com pena que vemos a forma como o Tenth Doctor a destrona completamente, mas é também com satisfação que aprendemos que o Doctor não castiga os maus da fita, mas sim quem fizer algo errado.

É um pormenor importante na moralidade do Doctor, o facto de ele não aniquilar Daleks só porque são Daleks, mas sim porque fizeram algo errado. Ou que ele considera errado, pelo menos. É de certa forma algo que minimiza o ódio feroz sob a superfície sábia mas errática do Doctor. Mas mais importante – e mais bem feito – é o impacto que os acontecimentos deste episódio têm em Harriet Jones.

 

 

Directamente em contraste com o Doctor, que não está por cá, apenas passa por cá de vez em quando, Jones é uma mulher muito diferente daquela que enfrentou os Slitheen. Não tem medo de fazer o que acha que é preciso, tal como o Doctor faz sempre, e o seu acto não é mais cruel do que muitas das coisas que vemos o próprio Doctor fazer. A diferença está essencialmente na motivação. O Doctor só toma medidas destas em último caso, quando está absolutamente encurralado. O destino dos Sycorax, no entanto, foi assinado por Harriet Jones assim que entraram em contacto com a Terra pela primeira vez.

E não é completamente despropositado! Ou melhor, não parece irrealista. Tal como todas as personagens de Russel T. Davies, também esta tem uma densidade incrível e não espanta ninguém com as suas acções. Foram até bastante previsíveis, e são o testemunho vincado de como o poder e a responsabilidade alteram as pessoas. Acções que o Doctor só condena porque o lembram demasiado disso mesmo, a ele que já há muito tempo que tomou a responsabilidade de toda a realidade sobre os seus ombros. Alguém que numa altura conta todas as crianças que morreram em Gallifrey por sua causa, e que noutra altura as esquece. Alguém com o poder para fazer o que é preciso, e que o faz.

Assim é Harriet Jones, com a diferença de que ela não tem dois corações e uma mente do tamanho do Universo, e muito menos uma Tardis. Está apenas munida da sua dimensão humana, que tanta estranheza causa ao Tenth Doctor, acabado de regenerar. E é um trabalho soberbo da actriz, Penelope Wilton, que representa na perfeição a tenacidade de uma pessoa a defender um planeta inteiro, sem hesitar em desapontar alguém como o Doctor, que o enfrenta sem remorsos das suas acções, e que depois de ser rejeitada por ele, ainda o respeita o suficiente para se sacrificar em seu auxílio, como veremos mais à frente.

Enfim, mesmo com a confusão pegada que temos em Londres e com um Doctor diminuído se há coisa que sabemos bem – melhor até do que as próprias personagens no tempo deste episódio – é que este nunca pode falhar com Rose e basta um sussurrado “Help me” para se levantar e destruir o perigo eminente – neste caso uma árvore de Natal.

Mas uma recuperação demora tempo e mesmo com um serviço de salvamento pelo meio é preciso retomar o descanso e desta vez até ao fim. Mas o mundo continua ameaçado, mais do que a memória alguma vez reteve e só há um sítio seguro: a TARDIS!

Infelizmente, ou não, esta interfere com os sinais da nave Sycorax estacionada por cima de Londres e é por isso mesmo teletransportada para junto da assembleia desta espécie onde Harriet Jones tentava decidir o destino de todos os humanos.

 

 

E é aqui que tudo acontece: um termo de chá caído enche a TARDIS com radicais livres e tanino e era mesmo o que faltava para a regeneração ficar completa. Como já bem sabemos os primeiros tempos depois de regeneração são intensos e complicados e acabam sempre por nos surpreender: “Ok, first things first: Am I ginger?” e “Rude and not ginger!” dão-nos aquele momento engraçado em que vemos um Doctor confuso e curioso ao mesmo tempo. Mas rapidamente a situação chama a aventura e que nem cavaleiros temos uma luta de espadas.

E quem é que não se lembra da mão cortada que cresce miraculosamente numa questão de segundos? (Mão essa com propriedades de levar lágrimas aos olhos nuns episódios mais à frente) É das coisas mais estranhas que já vi em DW mas que cai de forma absolutamente genial no enquadramento da situação.

Mas regenerado ou não depois do Doctor mais negro que já seguimos não passamos completamente para algo diferente. David Tennant tem essa capacidade como actor – como já Eccleston tinha – de conseguir momentos absolutamente obscuros no que parecia ser um cenário leve. De um momento para o outro e sem qualquer hesitação. Na batalha final temos um momento em que a expressão do Doctor é completamente rígida e crua: “No second chances!”. Se por vezes Doctor Who nos parece sobre alguém muito jovial que passa a vida a correr e a salvar o mundo é nestes pequenos pontos que aparece o Time Lord com, mais coisa menos coisa, 900 anos, que já viajou muito, conheceu muito, destruiu a própria casa e toda a sua espécie. Um Doctor que tem muita coisa a mexer por dentro, muitos segredos ainda à espera de serem revelados.

E se mais queremos mais este episódio nos dá porque por muito que gostemos de Harriet Jones vê-mo-la a matar seres em retirada e é aí que mais uma vez vemos a inteligência do Doctor, na forma mais pura e genial: “Don't you think she looks tired?”. Podemos discutir se acabar com a carreira de Harriet foi uma boa ideia, afinal sabemos bem quem lhe sucede e o que acaba por fazer, não seja essa a oportunidade perfeita para reencontrarmos o velho inimigo de sempre, The Master, agora em modo Saxon! Mas aqui vemos uma característica que já nos é conhecida desde 1963: o Doctor sabe jogar muito bem com as pessoas, não precisa de guerrilhar ou  ter qualquer atitude brusca. Apenas com palavras, apenas com enleios simples consegue fazer prevalecer o seu ponto. E se já com Hartnell funcionava bem aqui se prova que assim continua.

Se misturarmos na equação o regresso de Rose a casa depois de uns meses de viagens por tempos e espaços imensos temos uma mistura de emoções: Mickey e Jackie reveêm namorada e filha, respectivamente, mas numa forma mudada, diferente da Rose que sempre conheceram. Mas aqui honra seja feita ao elenco desta série: nós não vemos duas personagens a ser surpreendidas, nós vemos uma mãe e um namorado, duas pessoas que não sabem o que fazer, como agir, como olhar para todas as coisas completamente fora do normal que acompanham o regresso de Rose. Não é por acaso que DW tem sucesso, são estes momentos, estes actores e estes episódios que nos mostram tudo o que a série tem para dar.  

 

Artigo da autoria de Júlia Pinheiro, membro da equipa Whoniverso