Há Natal em Gallifrey? - 'The End of Time'

12-12-2014 18:42

O fim de uma era

É quase doloroso rever estes episódios. Já sei exactamente o que vai acontecer, e é triste. Sem dúvida um dos melhores especiais de Natal, The End of Time (ambas as partes) é uma história excepcional, na qual Russel T. Davies se excedeu completamente.

Aqui, tudo é em grande e tudo é extremamente emocional. A sentença de morte que o Doctor está sempre à espera de ver cair em cima dele, a dor de se ver sozinho, o medo que tem de regenerar e, portanto, “morrer”... Tudo temas fortes e usados de forma particularmente intensa através de um argumento bem estruturado – ainda que tenha falhas – e representações fantásticas, especialmente da parte de David Tennant, John Simm e Bernard Cribbins.

A importância desta história é que é a primeira vez, deste The War Games, ainda com Patrick Troughton ao leme, que a série vê uma mudança total de elenco, com a diferença de que desta vez também a equipa de produção e o argumentista principal mudaram!

Este foi, portanto, o ponto final na era de David Tennant enquanto Doctor, na era de Russel T. Davies enquanto maestro da série, e o ponto final na era da série enquanto ficção científica de (relativamente) baixo orçamento e aspecto de projecção mediana.

Tudo muda com a introdução de Matt Smith, Steven Moffat e uma abordagem mais espectacular e a tender para o hollywoodesca.

Enfrentar o destino

Ou alterá-lo, se quiserem. Praticamente nenhuma encarnação do Doctor é grande fã de se sujeitar à ditadura das linhas temporais, mas este Tenth é particularmente alérgico. Quando sabe que tem os dias contados, foge. Como que faz um desvio enorme entre dois momentos consecutivos do seu destino, para ganhar tempo.

É assim que o vemos no início, a encontrar-se com Ood Sigma, despreocupado e a tentar ignorar a calma e certeza do Ood. Mas de onde vem tudo isto? Medo? Ou será a arrogância, de que tenho vindo a falar em outros artigos, que o faz achar-se capaz de fugir ao seu destino? Já vimos em The Waters of Mars que a noção de contrariar o futuro lhe agrada, e que o Tenth pode facilmente cair em estado Timelord Victorious!, mas será isso o que se passa aqui?

Acho que não. Para mim, todo este episódio mostra um Doctor extremamente triste e angustiado, assustado por saber que tem os dias contados, e infeliz por ter perdido toda a gente. O Doctor desta história é um Doctor demasiado consciente da sua própria vida, e que tenta a todo o custo evitar o seu final trágico, ao mesmo tempo que caminha de livre vontade para esse mesmo fim, por causa de um bem maior: salvar os outros e não deixar que os sacrifícios que ele, e outros, fizeram, tenham sido em vão.

Sofrer o passado

Outro marco importante deste episódio é algo de que eu não estava nada à espera: o regresso dos Timelords. Quando conheci a série, com Christopher Eccleston, fiquei a saber que o Doctor era um deles e que tinha sido obrigado a matá-los a todos, juntamente com os Daleks, na Time War, e que graças ao poder que possuíam e à exaustão dos confrontos com os Daleks, os Timelords estavam a começar a enlouquecer.

É por isso que a revelação de Timelords, em frente a uma gigantesca assembleia, a gritarem que vão voltar, tem impacto. Lembro-me que a minha mente começou logo a deambular desesperada por todas as hipóteses possíveis e imaginárias do que ia acontecer, como é que o Doctor, já mudado, ia encarar este regresso? Como é que os Timelords iam encarar o Doctor, um foragido que os condenou para sempre, ou o Master, um dos seres mais instáveis e ambiciosos do Universo?

Surpreendentemente bem, tendo em conta as situações. A utilização escassa destas personagens, bem como a demora na revelação, apenas serviu para adensar o mistério e espicaçar a curiosidade. A narração do Lord President começa interessante (hum, narração, isto é novo), passa a desnecessária (shiu, eu estou a ver isso a acontecer, não preciso que descrevas) e depois rapidamente a fantástica, quando se revela que está a ser feita por uma personagem que podemos começar desde logo a adivinhar como Timelord.

A questão é porquê incluí-los naquilo que já é uma história recheada de linhas narrativas paralelas... E a verdade é que faz todo o sentido. O Ninth Doctor foi um Doctor traumatizado pelos eventos da Time War, e o Tenth conseguiu começar a ultrapassar isso. Lentamente, tornou-se mais confiante, assertivo e dominante. Conseguiu trocar o olhar triste de quem acabou de regressar da guerra pelo olhar feliz de quem faz um amigo novo, ou de quem deseja um Merry Christmas.

E tudo isso lhe subiu à cabeça. Timelord Victorious!, lembram-se? Faz todo o sentido que na sua última história seja confrontado com os Timelords no pior momento da sua História colectiva: os dias finais da Time War. Foram dias desesperados, e isso sente-se nas desavenças que há à volta da mesa do Lord President.

O que interessa, no entanto, é ver que o Doctor só espevita e só deixa de pensar em fugir quando percebe que a sua raça vai voltar. É mais um daqueles momentos à là Eccleston, e que o Tennant também faz bem, durante os quais conseguem transmitir que o Doctor passa de encurralado a “VAMOS SALVAR TUDO!” num mero instante.

De certa forma, era exactamente o que ele precisava. Uma ameaça que ele inicialmente não consegue travar, ou seja, um completo ataque a tudo o que ele tem vindo a construir. Quando se apercebe disso, põe uma nave a funcionar, faz um voo rasante à casa onde tudo se passa, e cai pela clarabóia, de uma nave em movimento. Mais badass que isto é complicado.

Melhor que isto tudo é o que se passa com o Master de John Simm, e o som de tambores que ouve continuamente na sua cabeça. Não tenham dúvidas, todo o enredo é de um nível de sylinness britânico bastante típico de Davies, mas tem um pormenor que acho brilhante e que é exactamente o rufar de tambores de que o Master se queixa.

Até o Doctor fica assustado, quando o consegue ouvir. Suponho que era por isto que os Timelords eram considerados génios praticamente absolutos. Quem é que se ia lembrar de inserir o rufar de tambores, ao ritmo de um coração de Timelord, a tocar na cabeça do Master para depois servir como antena de localização? Genial! E explica muita coisa...

Não se percebe muito bem qual é o plano exactamente destes Timelords, que parecem mais interessados em castigar os votantes do 'contra' e em entradas em grande estilo, do que noutra coisa qualquer.

É preciso um lar

Este plano passa essencialmente por trazer de volta os Timelords através de um portal com o qual o Master interfere. O problema é que o Tenth Doctor também quer isso, de certa forma, por mais que se queixa de como toda a sua espécie enlouqueceu completamente.

Só que a solução encontrada pelo Lord President envolve a chacina da Humanidade e a substituição da Terra por Gallifrey, e isso o Doctor não pode permitir. É então que parte para a acção e tudo fica, eventualmente, resolvido. Mas nota-se o quão contrariado está, ao fazê-lo. Ele sabe que tem de o fazer, sabe que os Timelords saídos da Time War são loucos, e que ao entrarem no nosso Universo só vão libertar caos, mas ele percebo-os. Quer, tanto como eles, salvar Gallifrey e todos os que nele vivem. Quer voltar a olhar para os céus laranja e a sentir a relva alta nas pernas. Quer contemplar Arcadia e conviver com os outros Timelords... Mas não pode, e sacrifica tudo isso pelo bem maior.

A força para reagir dessa forma, é tirada directamente de Wilfred, o seu companion acidental para esta história. Centenas de anos mais novo, mas sábio, inocente e preocupado, age de forma paternal em relação ao Doctor, o que não é, de todo, normal. O reconhecimento que este faz de que gostava de o ter como pai, para além de ser um forte momento emocional, é o libertar de uma âncora para o Tenth. Graças a Wilfred, ele sabe que não tem Gallifrey, mas tem um lar. O seu planeta é um caso perdido (pelo menos até daí a alguns especiais de Natal) mas ele não.

Sacrifícios

Apesar de tudo, esta é uma história trágica, com um dos finais mais tristes de que tenho memória. O Doctor não só é confrontado com a forma como perdeu Donna, mas acaba por perder Gallifrey pela segunda vez! E de livre vontade. Pode ter sido uma encarnação arrogante, mas era também uma encarnação estóica.

Mas os sacrifícios não se ficam por aí. O mais inesperado, e o mais importante (ainda que não o mais tocante), é o do Master, que salva o Doctor ao usar a sua energia instável para atacar o Lord President, acabando por ser igualmente sugado para Gallifrey, em plena Time War. Há vários momentos ao longo dos episódios em que o Master parece ficar lúcido e realmente pensar nas coisas, mas nenhum é tão óbvio e marcante como este.

Unidos contra um inimigo comum pela primeira vez em muito tempo, a química entre ambos é imensa e instantânea. As suas mentes são claramente equiparáveis, e o próprio Doctor expressa explícitamente a sua admiração por ele. Chega mesmo a propor-lhe que viajem juntos! Não sei se será uma relação equiparável à original, entre o Third Doctor de Pertwee e o Master de Delgado, mas suspeito que sim. Uma versão mais jovem e frenética dessa relação.

Nesses momentos, o Master apercebe-se de que não lhe serve de nada enfrentar o Doctor, quando os verdadeiros inimigos são outros: aqueles que lhe implantaram o rufar de tambores e fizeram dele quem ele é. Sacrifica-se e até o Doctor fica espantado. Infelizmente o assunto não voltou a ser mencionado, nem com o regresso do Master sob a forma de Missy, mas tenho esperanças de que venha a ser, porque demonstra uma densidade enorme ao vilão (agora vilã, ah!) e à sua relação com o Doctor...

Todos sabemos, no entanto, qual é o maior sacrifício de todos. Depois de vários momentos enganadores em que pensamos ouvir as quatro batidas da profecia que dita a morte do Tenth Doctor, já este está satisfeito por ter salvo o dia e evitado o seu destino, e ouvimos as quatro pancadas. Quatro leves pancadas no vidro, de um Wilfred preso numa das cabinas das quais só se pode sair depois de outra pessoa entrar na outra cabina e ficar lá preso.

É nesse momento que percebemos que tudo acabou, ao mesmo tempo que o Doctor. O olhar de felicidade cai por completo, o sorriso desaparece, e por momentos vemos o regresso do Timelord Victorious!, completamente derrotado e enfurecido, a descarregar no Wilfred e em toda a gente. Arrogância? Sim. Compreensível? Também.

Afinal, estamos a falar do Doctor. Alguém que salva Universo com regularidade e derrota Daleks como exercício matinal, para abrir o apetite. Alguém que já sacrificou tudo o que havia a sacrificar por um planeta que nem sabe bem que ele existe, e por muitos outros. Alguém que sacrificou a sua própria felicidade e se resignou a exterminar a sua própria espécie, duas vezes. Alguém que se recusa a usar armas enquanto houver algum tipo de esperança.

O Doctor! Condenado à morte por um dos seus melhores amigos. Os gritos de “It's not fair!” são perturbadores porque concordamos. Ele não devia morrer, muito menos assim. A sua fúria é genuína e nunca se dissipa por completo, nem mesmo enquanto se dirige à cabina, entra lá dentro e pressiona o botão, libertando Wilfred. É quase impossível não sentir as emoções à flor da pele, neste momento! Aqui está o Doctor, às avessas com o mundo, a sentir-se injustiçado, com oportunidade de virar costas e continuar a sua vida, mas incapaz de deixar para trás um velhote simpático e aparentemente sem qualquer importância.

Não sei se teria o mesmo efeito com um perfeito desconhecido, mas a profunda ligação entre estas duas personagens só piora a situação. Nós, os espectadores, somos confrontados com uma escolha tão impossível quanto a do Doctor: ficar feliz por se salvar o Wilfred, ou triste por não se salvar o Tenth Doctor.

É interessante notar que tal como o Ninth, o Tenth absorve uma dose massiva de algo que ameaçava matar o seu companion e regenera por causa disso. Coincidência? Ou mais uma marca distintiva de uma era em que o Doctor se sente mais sozinho do que nunca e precisa dos companions da mesma forma que alguém precisa de uma família? Não como meros companheiros de viagem, mas como algo mais? Talvez!

“I don't wanna go”

Um sinal da qualidade desta despedida é o facto de qualquer whovian que se preze ter flashes deste episódio sempre que ouve esta expressão. A expressão na cara do Doctor é dolorosa, e pura e simplesmente não queremos que aconteça.

É claro que Davies jogou com tudo o que podia, para acentuar a dor da despedida, desde o sacrífico para salvar Wilfred até à viagem para reencontrar os vários companions – que se esticou um bocadinho – mas são dois episódios inteiros a caminhar nessa direcção. Era inevitável que nos deixássemos cair na armadilha tão bem planeada.

Ainda podia dizer muito mais, mas esta é daquelas histórias tão recheadas que é impossível alguma vez dizer tudo o que há para dizer. E acho que não preciso de dizer mais nada, pois a última frase deste Doctor diz tudo. Serve de resumo da sua era, do Doctor que nunca quis deixar os outros partir, e que no final não quer ser ele a partir.

Mas talvez ainda mais importante do que isso é estes episódios serem o fim de uma era (de várias formas, como já mencionei), mas também o princípio de outra, uma era revitalizada para a série, que nunca esteve tão bem. A importância de Eccleston enquanto Doctor que trouxe o programa de volta reflecte-se em Tennant, que amplificou o seu sucesso e preparou o caminho para Matt Smith, um jovem com potencial e que passa a ter todas as hipóteses possíveis. A personagem está mais do que estabelecida para os novos espectadores, e mais do que evoluída, para os antigos; e a mitologia do programa já é novamente parte de tudo o que acontece, em toda a sua glória.

Tudo o que o Eleventh Doctor teve de fazer foi pegar em tudo o que os seus antecessores lhe deixaram, e ter uma interpretação notável da personagem que todos adoramos. Um trabalho difícil feito fácil porque “The moment has been prepared for.”!

 

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso