Há Natal em Gallifrey? - 'The Next Doctor'

10-12-2014 14:45

The Next Doctor é um bom episódio e um bom especial de Natal. Não sei bem como foi na altura em que estreou, mas eu quando o vi fui apanhado completamente desprevenido. Aqui estava uma personagem com uma personalidade bastante parecida à do Doctor, que afirma ser o Doctor!

Não é de estranhar que a minha primeira reacção tenha sido igual à do Tenth Doctor: “uhh, é o próximo, fascinante!”. E que grande twist que era, apresentar assim o próximo Doctor. E ele até tinha uma sonic screwdriver (“It makes a noise, sonic isn't it?”), uma Tardis e uma companion chamada... Rosita!

E ainda por cima tudo isto se passa na Inglaterra Vitoriana. Haverá época mais típica para esta personagem? Parece que encarnação atrás de encarnação, o Doctor acaba por lá aparecer. Não o pode negar, especialmente neste episódio, em que ainda por cima é Natal. Natal Vitoriano. O seu ar de felicidade é tão genuíno que não consigo deixar de pensar que se calhar há ali alguma felicidade real, vinda de David Tennant.

Mas sim, o episódio começa exactamente assim. A Tardis estaciona, o Doctor atravessa as portas e fica deliciado ao ver onde está e quando está, disparando “Merry Christmas!” em todas as direcções possíveis e imaginárias.

Quando chamam por ele, no entanto, ainda faz um ar mais satisfeito. Se há coisa que este Doctor gosta mais do que do Natal, é problemas! A prova é o sorriso gigante e a correria desenfreada sem qualquer tipo de hesitação.

O que encontra, no entanto, fá-lo parar e pensar duas vezes. E aqui devo dizer que David Morrissey como Doctor está impecável. O homem realmente parece uma nova encarnação, e transmite uma inocência que consegue não ser prejudicada por eu o conhecer como uma personagem bastante desagradável de Walking Dead, o que é no mínimo notável, tendo em conta a intensidade dessa personagem.

Mais interessante que tudo isto, no entanto, é ver que este episódio volta a ser um estudo de personagem do Tenth Doctor, mas em vez de se focar inteiramente nele, diverge ligeiramente para este supostamente novo Doctor. O resultado é hilariante. A interacção entre Tennant e Morrissey é digna de nota, e a forma como vão tropeçando nos problemas é muito interessante de acompanhar.

Esta dinâmica começa a mudar quando o Doctor, o verdadeiro, se começa a aperceber de que algo está errado. Algo muito curioso é notar que isto acontece ao mesmo tempo que para o espectador, ou seja, este episódio é uma raridade: é o Doctor, e não o/a companion que serve de identificação ao espectador.

Isto só por si era digno de uma análise detalhada, mas fiquemo-nos por pensar que de repente temos de ajustar as nossas expectativas e a forma como seguimos todos os acontecimentos, pois não precisamos de tentar perceber o Doctor, ele diz-nos ou mostra-nos tudo o que faz, além de dar indicações de tudo o que pensa. Não me lembro de nenhum outro episódio em que isto aconteça! Tirando, talvez alguns da série clássica...

Mas no meio disto tudo, aparecem os Cybermen. Que são assustadores como raramente os tenho visto, nos episódios da nova era. São dos vilões cuja utilização é mais criticada, especialmente nos últimos tempos, mas aqui estão bem escritos, bem utilizados e bem desenvolvidos. Bem, têm uma pequena falha, mas que pode ser mais ou menos explicada de forma coerente dentro da narrativa, que é o facto de obedecerem à verdadeira vilã depois a verem a matar o Cyber-king, coisa que só faz sentido se sentirem medo. Mas não é susposto sentirem nada. Não faz sentido... A não ser que consideremos que tinham problemas de software, por assim dizer.

Entre saltos e correrias e algumas explosões, o mistério é resolvido e o novo Doctor revela-se como sendo Jackson Lake, o homem cujo homícidio tentava resolver. Atacado por Cybermen, mataram-lhe a mulher, tiraram-lhe o filho e deixaram-no à beira da loucura. Uns contentores especiais recheados de informação que os vilões deixam para trás enchem-lhe a cabeça com tudo o que há a saber sobre o Doctor, e aí está.

É aqui que se pode ver o tema central do episódio, bem escondido pela comédia leviana. A morte. Este The Next Doctor é também um episódio bastante triste, em que alguém perde não só a família, mas as memórias. E é um episódio em que o Doctor tem que quebrar a ilusão, e não alimentá-la, e mostrar a alguém como a sua vida é miserável.

A forma como o Doctor acompanha um Jackson Lake iludido é bastante característico do personagem, curioso e incapaz de ficar quieto, mas a forma como o próprio Jackson Lake insiste que Rosita acompanhe o Tenth e depois o segue ele próprio é específico a esta encarnação em particular. Qualquer pessoa que o encontre percebe que ele precisa de um companion. Já Donna Noble, em The Runaway Bride, depois de o encontrar pela primeira vez, lhe diz isso, e parece ser um tema recorrente durante a era de Tennant.

Porquê? Ora, porque o Doctor de Tennant, muito à semelhança do Doctor de Capaldi, é um Doctor furioso, com muita agressividade à superfície, à espera de rebentar, e que portanto preciso de alguém que o controle. Para além de ser extremamente arrogante, claro. Qualquer oportunidade é boa para se mostrar superior, e qualquer oportunidade, a qualquer momento, pode despoletar o monstro que vive adormecido no seu anterior, um monstro de raiva, frustração e tristeza de quem está demasiado habituado a ver todos morrer.

O que é interessante de ver é como esta encarnação, tão furiosa, tenta contrariar a sua própria disposição com todas as suas forças. Neste caso é quando oferece a Miss Hartigan, a verdadeira vilã, uma hipótese de se redimir e de se salvar, já depois de tomar controlo de um robot gigante que ameaça destruir Londres. Por muito que sinta necessidade de acabar com a ameaça, o respeito que tem pela mente de Hartigan, capaz de sobreviver ao processo de conversão em Cyberman, é demasiado.

Mas além do Doctor, o que dizer das duas personagens mais ou menos secundárias que realmente brilham? Falo de Jackson Lake e de Miss Hartigan, um herói e uma vilã como há muito tempo que não via. O primeiro é uma personagem extraordinária a todos os níveis, capaz de pôr a multidão a aplaudir o Doctor e ainda fazer o Timelord mudar de ideias quando a passar a noite de Natal com ele e os seus. Morrissey está muito bem, e a personagem também tem um arco narrativo muito bem fechado, ficando completamente enquadrado neste episódio, sem precisar de mais nada.

Então e Miss Hartigan, a vilã, outra personagem fantástica, dura e fria, com uma mente que põe respeito a um batalhão de Cybermen e ao próprio Doctor? Pois bem, também não me lembro da última vez, antes de ver este episódio, em que encontrei uma personagem feminina tão forte e tão bem construída.

Completamente fugida aos lugares-comuns, rapidamente se encontra em controlo de uma série de homens, via dispositivos cibernéticos, e depois de uma hoste de Cybermen e do próprio robot gigante. Sem dificuldade. Incrível! A interpretação da actriz também é impecável, ao passar o tempo quase todo de sorriso na boca, mas transmitindo uma variedade enorme de emoções.

No fim, o que fica, é um bom episódio, relativamente leve, mas que realmente arranca com o fim desta encarnação do Doctor, quando Jackson Lake o confronta com a sua falta de companion. Um processo aqui desencadeado com repercussões que duraram até ao final da era de Tennant e que, de certa forma, ainda perduram. O medo de morrer, o medo de ficar sozinho, e o peso de ser o Doctor.

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso