Há Natal em Gallifrey? - 'The Time of the Doctor'

21-12-2014 18:06

Épico a vários níveis, este episódio fez-me algumas comichões da primeira vez que o vi, há um ano atrás. Pareceu-me apressado e demasiado cheio, repleto de momentos para puxar à lágrima e pouco mais. Com esta segunda visualização, tenho de mudar de opinião. É épico e grandioso, e um episódio muito especial. Não só é o fim da era de Matt Smith como o Eleventh Doctor, como é o episódio número oitocentos!

Depois de celebrar os cinquenta anos, aqui celebram-se os oitocentos episódios. E como? Com frequentes referências ao passado e um culminar (maioritariamente) bem planeado de uma série de arcos narrativos e temáticos inerentes a esta encarnação do Doctor, mas não só.

E isto é feito logo a partir da introdução antes dos créditos, com uma sequência que resume na perfeição o Eleventh Doctor: aparece numa nave desconhecida, com uma capa, um pedaço de Dalek, e pede explicações, apenas para descobrir que está numa nave Dalek. A coragem típica que demonstrou ao longo das suas temporadas, impulsiva e ingénua, seguida da palermice típica do Doctor mais hiperactivo e aleatório de sempre.

Quando volta à Tardis, está sozinho. Mais ou menos, graças ao novo companion, Handles, uma cabeça de Cyberman. E depois repete a brincadeira ao levar Handles para o interior de uma nave de Cybermen. Típico, tão típico.

Mais tarde temos o Doctor, nu, a dizer a Clara que vai à igreja. O momento frenético que se segue é hilariante, com o Doctor a aparecer nu à família da sua companion e com ambos a levarem o peru para a Tardis, para o cozinharem usando o Time Vortex. E cá estamos de volta a orbitar o planeta desconhecido que está a transmitir uma mensagem impossível de traduzir!

É neste momento que Handles decide dar um ar de sua graça e revelar o nome do planeta: Gallifrey. Ambos os corações do Doctor devem ter falhado uma batida, e o ar perdido e amedrontado de Matt Smith espelha-o na perfeição. Rapidamente ficamos a saber que aquele planeta não é Gallifrey, mas há claramente algo de estranho a passar-se. E isto depois de um especial de aniversário, The Day of the Doctor, em que ficamos a saber que Gallifrey não está completamente perdida, apenas “guardado” num universo paralelo.

O momento passa, e o Doctor e Clara são convidados a entrar na nave da Igreja por Tasha Lem, uma personagem misteriosa que parece ter um passado com o Doctor e que, pior do que isso, tem vários sinais de ser... River Song, o que muito assustou os fãs. Pessoalmente, não me fazia muita confusão, mas compreendo e acho que prefiro que não se tenha revelado como tal, pelo menos por agora.

Depois deste momento, tudo acontece muito depressa durante um bom bocado do episódio. Aparecem os Silence, o Doctor e Clara são transportados para o planeta, descobrem Weeping Angels cobertos de neve e um planeta pacífico, onde é impossível mentir graças a um truth field, e que os seus habitantes revelam chamar-se Christmas. Ah! Perfeito! Um planeta chamado Natal, como cenário para uma aventura do Doctor? Ah!

Depois de investigarem um pouco, o Doctor encontra a causa de tudo isto. Uma crack, uma racha na parede como a que encontrou pouco depois de regenerar e que o tem perseguido desde aí. É daí que vem a mensagem, e o Doctor cumprimenta-a como a um velho amigo. E percebe tudo. É Gallifrey a “espreitar” para o nosso universo. Quando a mensagem é traduzida, revela-se como a pergunta mais antiga de todo o universo: Doctor... Who? Doctor Who? Doctor Who?!

É o regresso do planeta dos Timelords, depois do falhanço, por loucura, que vimos em The End of Time, e a salvação vista em The Day of the Doctor. Um regresso que acontece no fim de uma era, e que estava planeado (espero eu) desde o início dessa mesma era.

A revelação não é isenta de problemas, no entanto. Para começar, a crack aparece em The Eleventh Hour, logo a seguir a vermos o planeta a ser empurrado de volta, por os Timelords estarem loucos de poder. Ou pelo menos a parte que vimos, que em The Day of the Doctor vemos um grupo de Timelords bastante razoáveis...

E depois, como se vai ver ao longo do episódio, não é completamente coerente, e parece que foi enfiada à força, só para dar um novo conjunto de regenerações ao Doctor e para criar motivações para as temporadas seguintes. É que a pergunta que ecoou por todo o universo, Doctor who?, para além de ser mais uma homenagem ao programa, era uma forma dos Timelords conseguirem voltar. Sabiam que o Doctor estava deste lado, e que ele era o único a saber o seu nome, portanto só precisavam que ele respondesse para saberem que estavam no sítio certo e que era seguro atravessar.

Só que ninguém quer isso, nem os bons nem os maus da fita, pois isso implicaria uma nova Time War... Cria-se um impasse, com um autêntico cerco ao planeta, que entretanto se revelou como Trenzalore, e com a Igreja de Tasha Lem a ter uma mudança de fé para Silence will fall, mais uma coisa que tem acompanhado esta encarnação do Doctor, que fica no planeta, a defendê-lo, chegando inclusivamente a enganar Clara e a fazê-la regressar a casa sem ele.

Mais tarde, Clara pede ajuda através da crack, convencendo os Timelords o suficiente para que eles dessem um novo conjunto de regenerações ao Doctor. Mas isto implicaria que já podiam regressar, não? Não há nenhum sinal disso, o que considero uma falha, mas talvez seja explicado eventualmente...

O que interessa é que o Doctor envelhece e envelhece, completamente consciente de que chegou ao seu fim, pois já gastou todas as suas regenerações (incluindo o Captain Grumpy que foi o War Doctor e as vanity issues que originaram o Meta-Crisis Doctor). Sozinho na sua torre, passa séculos a derrotar monstros, chegando mesmo a aliar-se com os Silence, numa das imagens mais poderosas do episódio, e a arranjar brinquedos para as crianças de Trenzalore.

A verdade é que nada podia ser mais Doctor-ish. Todo o episódio serve de homenagem à série e ao Eleventh Doctor, que morre, no fim, da mesma forma que a primeira encarnação, de Hartnell, de velhice. É o fim de um ciclo a ecoar o princípio desse mesmo ciclo. A diferença é que o First Doctor não tinha tanto a perder, e embora tenha tido uma despedida tão emocional como esta, foi mais discreta, menos épica.

Sinal dos tempos, é certo, e da fama crescente do próprio Doctor no universo da série e no mundo real, mas não deixa de ser interessante. O Eleventh, ao regenerar, é um Doctor cansado, com dois mil anos em cima, muitos deles passados nesta encarnação, preso em Trenzalore a derrotar Sontarans, Daleks, Cybermen de madeira e tantas outras criaturas.

É interessante de reparar que este final só é possível porque os Timelords deram um novo ciclo de regenerações ao Doctor, o que liga muito bem com a rivalidade que este tem com o Master, que quase desde que o conhecemos que luta por um novo corpo e novas regenerações, tentando frequentemente ficar com as do Doctor. O Master tem sempre que lutar e sofrer e planear muito para conseguir sobreviver e convencer os Timelords a manterem-no vivo (embora o tenham ressuscitado de livre vontade para combater na Time War...), e o Doctor, sem pedir nada e já em paz consigo próprio e com o seu fim, recebe um novo ciclo.

De resto, podia comentar muita coisa, desde o Doctor careca à Amy alucinada, mas nada disso interessa quando se tem um final a dois tempos como este, típico de uma regeneração: o Doctor actual a despedir-se, e desta vez com um discurso muito digno da personagem, de forma emocional, e o novo Doctor a aparecer e a chocar-nos completamente.

Não há momento mais intenso para os fãs, em toda a era do Matt Smith, como o cair do laço, o símbolo maior deste Doctor. É o sinal de que acabou, não há hipótese, desta vez não há um plano maluco nem nada que se pareça, apenas mais um Doctor, no fim da sua vida.

E depois, com a velocidade de um espirro, um Capaldi de ar espantado e sotaque escocês, imediatamente mais rude e ligeiramente amnésico. É um bom momento, e um bom final para um bom episódio. Deixa-nos ansiosos para o que vem aí, e com saudades do que acabámos de deixar para trás. Mas é assim a dinâmica deste programa, sempre em frente, sempre a mudar, com apenas uma coisa constante: nós, os fãs.

“I will not forget one line of this. Not one day, I swear. I will always remember when the Doctor was me.”

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso