Moffat e os medos

19-07-2015 14:07

Goste-se ou não do homem, Steven Moffat sabe bem o que faz. Por muito que nos possamos queixar de muitos episódios, e de temporadas inteiras, estarem sob a sua alçada, a verdade é que foi com Moffat que a série entrou na sua era dourada pós-2005. Muito graças ao excelente trabalho de construção e apresentação que Russel T. Davies conseguiu introduzir, assim como à crescente popularidade de David Tennant no papel, mas foi quando Moffat agarrou nas rédeas que tudo ficou maior, e melhor, e mais brilhante.

E eu sou daqueles que o critica, e muito. Mas sei reconhecer um trabalho bem feito quando o vejo, e Moffat tem muito disso para apresentar. Já para não falar de que a mais recente temporada, a primeira de Peter Capaldi como o Twelfth Doctor, me fez recuperar um pouco da minha confiança nos seus argumentos.

Aquilo de que muita gente se esquece é que Moffat é o único argumentista a escrever para todas as temporadas da série depois de 2005. Ah pois. Muitos dos grandes momentos de que nos lembramos, assim como algumas das melhores personagens da série, foram criadas, se não por ele, pelo menos durante episódios escritos por ele.

É o caso de Jack Harkness e River Song, por exemplo. Sabem aqueles dois episódios fantásticos, em cenário de guerra, com o Eccleston como Ninth Doctor, e um puto com uma máscara de gás na cara, a andar por lá a ser perturbador e a perguntar “Are you my mommy?” e, lá está, o time agent engatatão agora tão bem conhecido? Pois, foi Steven Moffat que escreveu.

Aquele episódio dum navio ligado a uma França antiga e opulenta através de lareiras, com uma Madame de Pompadour, vocês sabem, um episódio brilhante a todos os níveis, que inclui o Tennant a saltar por uma janela montado num cavalo branco? Moffat.

E aquele na terceira temporada, quase unanimemente reconhecido como um dos melhores episódios de toda a série, que nos deu a conhecer os Weeping Angels? Moffat.

Então e a River Song, em mais um brilhante two-parter, que incluiu os Vashta Nerada, um dos vilões mais arrepiantes da série? Moffat.

Depois disto, começaram as temporadas com Matt Smith como Eleventh Doctor, e o homem desde aí nunca mais parou, embora na última temporada tenha dado muitos episódios a escrever a autores convidados.

Estão a compreender o que disse no início, não estão? É impressionante, para vos ser sincero, que um argumentista tenha ao mesmo tempo tão boas críticas e tão más críticas.

Só há aqui uma questão, que talvez explique muita coisa: o tipo de episódio. Mais especificamente, a temática abordada. A mim parece-me que o Moffat só escreve argumentos mesmo, mesmo, mesmo bons, quando escreve sobre medos (The Day of the Doctor é, para mim, a grande excepção, mas o factor épico e nostalgia é forte, nesse episódio).

Os episódios que mencionei até agora são exactamente focados no medo, e no quão primitivo é enquanto emoção. Mesmo episódios na época Matt Smith e Peter Capaldi só atingem qualidades elevadas de todos os pontos de vista quando se focam nessa temática. Basta ver que foi preciso passarem várias temporadas, desde que tomou as rédeas, até chegar a Listen, na oitava temporada (a sua quarta temporada!) e ser novamente elogiado e acarinhado por uma grande fatia dos fãs.

E com razão. Tantos episódios que não passam de “vá, porreiros”, ou que chegam mesmo a entrar na mediocridade. De vez em quando parece que tem rasgos de génio e aparecem Blink's e The Girl in the Fireplace's.

Está tudo relacionado com o seu estilo, digamos assim. Moffat gosta de plot twists. Gosta de suspense. Prefere contar uma história de forma pouco linear para se aproveitar ao máximo das potencialidades de viagens no tempo e outras coisas estranhas que Doctor Who permite. Se há género que se presta a estas coisas com extrema facilidade, é o terror.

É a escolha óbvia e podem-se fazer coisas realmente muito porreiras. Afinal, é um género que passa muito tempo a explorar o medo do desconhecido! Ideal para quem gosta de surpreender, não?

Se forem ver todos os episódios que mencionei, vão ver isso mesmo. Uma exploração do medo, especificamente do medo do desconhecido: os aliens de origem desconhecida, as estátuas que só se mexem quando não as vemos, as viagens via lareiras que não se sabe como funcionam, o próprio escuro que ganha vida e nos persegue, ou o monstro que aperfeiçoou a arte de se esconder.

O tipo faz isto bem, é preciso sermos sinceros. Os outros episódios, de uma forma geral, mesmo que tenha gostado, enfim, meh. Estes? Excelentes! É um dom que o tipo tem, e isso ninguém pode negar.

Mas porque é que estes episódios funcionam tão bem? Parecendo que não, são consistentemente os que têm mais audiências e melhores críticas, mas será apenas porque o Moffat se especializou neles e os escreve tão bem que não dá hipótese? Ou existe algo por trás disso, algo que nos fascina fortemente nisto do medo e nos atrai, aos fãs, de forma quase subconsciente?

Eu acho que sim. É a mesma razão pela qual os fãs de livros e filmes de terror são “tão fãs”. São raras as pessoas que meramente “acham piada” a Lovecraft, ou a Poe, ou a Stephen King ou a qualquer outro autor de terror, e o mesmo se passa com os filmes. Ou se gosta imenso, porque se vibra mesmo com aquilo, ou não se gosta. O meio termo é raro. O próprio género não se dá a isso. Foca-se em despertar emoções fortes, e brinca constantemente com instintos mais primitivos do que aquilo que nós achamos, e acaba por nos tocar bem fundo no cérebro de lagarto.

Estes episódios do Moffat são exactamente a mesma coisa, e ainda por cima ele é bastante óbvio quanto ao tipo de medos que aborda. Coisas básicas, como o medo do escuro, ou coisas incrivelmente abrangentes, como as estátuas de anjos. E a abordagem é sempre muito parecida: don't blink, don't breathe, don't look, don't think, e por aí fora. Aquelas coisas que nós tomamos por garantidas e nas quais não pensamos de forma activa durante a maior parte do tempo.

É por isso que funciona tão bem. E também, verdade seja dita, porque o tipo faz isto mesmo bem. É preciso dar a mão à palmatória, de vez em quando, e até eu reconheço que ele é bom. A oitava temporada correu tão bem porque foi mais negra, mais próxima do terror e do suspense que o Moffat faz tão bem (e porque a maior parte dos episódios não saiu das mãos dele), e a próxima temporada, a julgar pelo trailer, parece seguir exactamente o mesmo caminho.

Espero bem que sim!

 

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso