Monstros, amor e Doctor Who

01-10-2014 20:48

Desde o Eight Doctor que não se podem ter dúvidas da faceta romântica desta série. Não é que não houvessem indícios em Doctor anteriores, mas nunca nada tão óbvio e tão, digamos, telenovelesco. Essa marca perdurou para a nova série, com a relação entre Doctor e companion a ser muitas vezes interpretada dessa forma, mesmo que erradamente.

Mas nem só de paixonetas vive o Doctor, como se pode ver pela encarnação de Peter Capaldi, mais velho e distante, com um papel mais paternal do que outra coisa. Isso não quer dizer, no entanto, que não haja romance nos episódios!

Por vezes até surge das formas e das fontes mais inesperadas, como é o caso de três episódios bastante paradigmáticos: Love & Monsters, Hide e Time Heist.

O primeiro é interessante de analisar por vários motivos, como o facto de ser Doctor-lite – ou seja, ter uma aparição reduzida do Doctor – e o facto de ter um dos monstros mais ridículos de sempre, literalmente desenhado por uma criança, acompanhado de uma das histórias mais bizarras de sempre.

Mas o que interessa para o caso é a história de amor que se desenvolve em pano de fundo e que se concretiza de forma bastante peculiar, no final, incluindo uma piada que espero que já tenha sido transmitida depois da miudagem ter ido dormir.

A demanda das personagens no episódio, que de certa forma se uniram mais intensamente por causa do monstro, o Abzorbaloff, culmina com quase todos mortos. O único sobrevivente é Elton Pope (Marc Warren), apaixonado por Ursula Blake (Shirley Henderson), que sobrevive mais ou menos, presa numa pedaço de cimento.

É um episódio estranho, com uma história de amor bizarra, mas ainda assim uma história de amor!

Os outros dois episódios já contam histórias mais convencionais, numa estrutura parecida. Em ambos os casos, os momentos finais dão uma reviravolta na história e mostram uma história de amor onde antes parecia haver apenas uma história de terror – em Hide – ou de típico assalto a um banco – em Time Heist.

O que é que isto nos diz? Para começar brinca com as nossas expectativas e com as do Doctor: as aparências e as circunstâncias enganam, e enganam muito. Aquilo que pareciam monstros são afinal seres apaixonados em busca da cara-metade.

Por outro lado mostra-nos que o amor não é fácil nas imediações de um Time Lord com mais de mil anos, uma TARDIS temperamental e a tendência de ambos para se meterem em complicações. Mesmo que no fim de Hide e Time Heist os monstruosos casais acabem junto e felizes da vida por causa do Doctor!

Apesar de tudo isto, a parte incrível, ou pelo menos a que mais me impressiona, é ver a sensibilidade do Doctor em acção. Endurecido por batalhas atrás de batalhas e de momentos agressivos e cruéis, alguns causados por si, seria de esperar que o alienígena milenar, para quem as vidas humanas pouco mais são do que instantes, ainda seja capaz de sentir e perceber o amor.

Mais ainda! Se vimos o megalómono Tenth Doctor a queimar um Sol para dizer adeus a Rose, e se se tornou hábito ver o Eleventh Doctor a trocar olhares com River Song, o que dizer do Twelfth Doctor a organizar a um elaboradíssimo assalto ao banco mais seguro do universo para conseguir unir um casal? Não seria de esperar da encarnação mais fria e agressiva dos últimos tempos, reminescente dos primeiros tempos de William Hartnell no papel!

E no entanto, aí têm. Isto só demonstra como a série é complexa e tem tido excelentes argumentistas ao longo dos tempos, capazes de usar um protagonista profundamente não-humano para contar histórias tão profundamente humanas.

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso