Os momentos mais negros

10-04-2016 14:52

Doctor Who começou por ser um programa para crianças e adolescentes. Tinha objectivos educativos bem firmados, embora nunca os tenha seguido muito à risca. Nem de forma particularmente convencional. Mas mesmo de que forma inconsciente, esse propósito foi-se mantendo no programa. É por isso que temos um protagonista como Doctor, tão expressivo e com um alcance emocional intenso e poderoso.

A criteriosa escolha de actores para as várias encarnações também tem tido bons resultados a esse nível: a alegria do Ninth Doctor no final de The Doctor Dances é contagiosa, e a alegria do Twelfth Doctor no final de Last Christmas é claramente sincera.

 

Todos os Doctors eventualmente demonstram algum tipo de felicidade extrema que, naqueles que conheço, me impressiona sempre. Mas não são momentos que me deixem fascinado. Como já é mais do que um lugar-comum hoje em dia, a felicidade, a alegria e todas essas emoções e sensações positivas, são retratadas de forma relativamente simplista. Já os momentos negros…

Seja fúria, seja solidão, desespero, tristeza ou outra coisa qualquer mais negativa, e a complexidade sobe de nível. Bem como a intensidade das representações. Não sei como é que a equipa técnica consegue, mas tem escolhido a dedo actores capazes de representar emoções negativas com uma intensidade e uma ferocidade como nunca vi em mais nenhum programa.

Não digo que estas emoções negativas sejam de facto mais complexas do que as positivas, mas normalmente são retratadas como tal. E verdade seja dita, a personagem em si ajuda bastante. O Doctor, na melhor das tradições epopeicas, é uma figura trágica. Um herói praticamente contra a sua vontade, com isso a trazer-lhe mais dissabores do que outra coisa. Ele bem tenta, dia após dia, que as vitórias compensem as derrotas… Mas se ganhar lhe dá uma satisfação imensa, nem sempre é um processo fácil e livre de pequenas derrotas. Já perder é um peso que lhe repousa nos ombros para sempre.

 

Tentar compreender a psicologia de uma personagem com milhares de anos está um bocado fora das nossas capacidades, mas os argumentistas de Doctor Who fazem o seu melhor e eu tenho gostado do resultado. O Doctor, no fundo, é alguém profundamente deprimido. Consegue sorrir e até consegue estar alegre durante algum tempo, mas vai-se abaixo com a mínima contrariedade. Nessas alturas é possível ver as verdadeiras emoções que espreitam debaixo daquela pele de salvador do Universo: uma solidão imensa, uma tristeza constante e uma enorme frustração.

Esses momentos podem acontecer de duas formas. Há a versão calma, em que Doctor se retrai e se esconde, como acontece depois de perder os Pond, tão afectado que demora um pouco a aperceber-se que River Song, que está mesmo ali ao seu lado, não perdeu amigos, perdeu os pais. Esse momento talvez seja mais visível em The Snowmen, quando o Eleventh Doctor parece ter mesmo desistido de ser o Doctor.

Ou então há a versão agressiva, a mais visível nos Doctors pós-2005, com momentos que chegam a roçar o ódio, uma característica do Doctor que lhe causa muito pesar por não a conseguir evitar. Basta olhar para o Ninth Doctor em Dalek, o Tenth Doctor em The Waters of Mars, o Eleventh Doctor em A Good Man Goes to War, ou o Twelfth Doctor em The Zygon Inversion. A fúria selvagem e imensamente poderosa que transparece nesses momentos não assusta só inimigos, assusta amigos, e põe-nos a nós, espectadores a pensar duas vezes na acções do Doctor.

 

São essas alturas, de solidão, tristeza, frustração, fúria e ódio, que mais marcam o Doctor. Cada vida salva é uma pequena vitória não só contra o Universo mas contra os seus próprios demónios. É fácil de ver, sempre muito perto da superfície, o Time Lord Victorious de The Waters of Mars, que também dá um ar de sua graça em The Girl Who Died.

E o que dizer da primeira metade de Hell Bent, a primeira vez que o Doctor pisa Gallifrey em muito tempo? Já o vimos a enfrentar todo o tipo de inimigos, todo o tipo de situações, e é quando o vemos finalmente voltar a casa que o vemos mais assustador. A fúria fria e a reprovação tranquila que transbordam de Peter Capaldi durante esses primeiros trinta minutos, praticamente silenciosos da sua parte, são emoções poderosas. Apenas capazes de existir numa personagem tão complexa como o Doctor.

 

Mas são também estes momentos mais negros que nos ensinam mais sobre a personagem. É no pico da fúria que verdadeiramente conhecemos o Doctor, e não no topo da sua alegria. A excitação de estar vivo e de conhecer o Universo é algo que já usa normalmente de forma bastante visível. Tudo o resto está escondido e enterrado no mais fundo do seu ser, e vem ao de cima nas piores alturas.

É por isso que o Doctor é uma personagem fascinante e praticamente inesgotável. Há tanto por explorar na sua personalidade e nas suas vivências, tantos aspectos diferentes para conhecer e examinar, que além de interessante, o tornam imprevisível. Nunca sabemos como vai ser a próxima encarnação, nem como é que a actual vai evoluir. Haverá melhor forma de nos manter agarrados?

 

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso