Passado, Presente e Futuro

03-01-2016 11:46

O início de um novo ano. A altura preferida da maior parte das pessoas para tomar decisões importantes e relevantes para as suas vidas. Mas também aquela altura em que abundam retrospectivas e previsões um pouco por todo o lado.

Mas algo de que as pessoas se esquecem muitas vezes é perceber como estão as coisas. É importante rever o passado e antever o futuro, mas olhar em redor e ver o presente talvez seja ainda mais importante.

Ainda por cima, se aprendi alguma coisa com Doctor Who, é que tudo isso pode ser feito ao mesmo tempo, com algum jeitinho. No fundo interessa não esquecer o que já passou, nunca perder de vista o que ainda aí vem, mas sempre com a cabeça no agora.

As coisas que acontecem à nossa volta são importantes, e de que maneira. A própria série é uma testemunha e uma prova disso mesmo, especialmente desde que está sob a alçada de Steven Moffat, fã incorrigível e actualmente dono de uma liberdade que faltou um pouco a Russel T. Davies, quando foi a sua vez de estar à frente do programa.

Então desde o episódio de aniversário dos cinquenta anos... Ui! As homenagens são constantes, e muitas vezes bastante subtis, mas se há coisa de que não o podemos acusar é de se esquecer do passado da série. Até o Twelfth Doctor, cada vez mais brilhantemente interpretado por Peter Capaldi, é uma autêntica ode a Doctors antigos e as suas histórias.

Ao mesmo tempo, os episódios não se limitam a contar uma história, esforçam-se também para lançar as sementes de futuros episódios. Claro que as características intrínsecas do programa, como o facto de existir uma máquina do tempo, permitem que essas sementes sejam por vezes lançadas de formas com que outros programas apenas podem sonhar.

Mas como em tudo, há dois lados nessa questão. As viagens no tempo dão uma imensa liberdade mas também criam fortes restrições. Num programa com mais de cinquenta anos de história não deve ser fácil não entrar em contradições. E o programa até tem uma certa tendência para ignorar essas coisas e simplesmente fazer o que lhe apetece.

As explicações ficam para os fãs.

Mas Moffat tem uma apetência especial por brincadeiras temporais, e tem mostrado, uma e outra vez, que nas mãos certas e com algum jeitinho, se podem criar coisas fantásticas.

Como exemplo basta olhar para o mais recente episódio, The Husbands of River Song, vendido como um episódio de Natal, mas que só o é por ter neve e um manto de Mãe Natal para a River. Não se deixem enganar: foi muito mais um episódio de Ano Novo do que outra coisa.

Ai não? Então vamos ver. Narrativamente, o episódio está dividido em três partes: tudo o que vem antes de chegarem à nave cheia de psicopatas, tudo o que se passa nessa mesma nave, e o epílogo do que vem depois de essa nave se despenhar.

Olhemos agora para a personagem de Alex Kingston, River Song. A mulher do Doctor, a sua companion mais fiel e mais feroz, e uma das personagens mais enigmáticas que alguma vez passou pela série. Na primeira parte temos uma River aventureira e espalhafatosa, sem vergonha ou pudor; a seguir vemos uma River mais sóbria e calma, mas muito mais emocional; e na parte final temos uma River assustada e maravilhada.

Agora é preciso terem em conta que estamos a falar de uma River com duzentos anos de idade, muito habituada a ter aventuras estranhas e alucinantes, bem como a caminhar de ambos os lados da ténue linha moral que separa o Bem do Mal - ambos conceitos abstractos que significam pouco para ela de forma individual; afinal até o Doctor, o seu grande amor, consegue ser um símbolo de ambos.

O que é isto tudo vos diz? A mim, depois de pensar nisso, lembrou-me logo do estereótipo da pessoa que pensa na sua vida: como o passado parece alegre e fácil, o presente é normal e nostálgico, e o futuro assusta mas emociona. A River neste episódio passa por todas essas fases no espaço de uma hora!

E depois é a vez do Doctor, num espaço de tempo ainda mais curto. Passou o episódio a lidar com a vida aventureira e secreta da mulher que mais ama, teve que aceitar o facto de que ele, no fim, é apenas uma parte da vida dela, por mais importante que seja, e tem ainda que compreender o quão injusto ele é para ela. Tão injusto, na realidade, que ela acredita piamente que ele não a ama da mesma forma que ela o ama a ele. Durante o discurso emocionado e emocionante de River, é possível ver a complexidade de emoções conflituosas que passam pela cara do Doctor (com Capaldi a mostrar mais uma vez a sua enorme qualidade enquanto actor), desde a tristeza mais profunda à afeição mais extrema.

O olhar que trocam no fim, quando a River percebe quem é aquele homem que tem ao lado, é o momento mais caracteristicamente River-Doctor da história do programa.

Mas o melhor ainda está para vir. A nave despenha-se, nenhum deles consegue evitar a desgraça, mas não demoram a perceber que se preocupam mais um com o outro do que com uma nave cheia de criminosos e psicopatas. River desmaia e o Doctor faz a coisa mais romântica possível (para além de queimar uma supernova para conseguir comunicar). Decide criar um futuro para os dois. O momento do desastre é simplesmente passado, e é lá que ele torna um homem rico, obrigando-o a prometer que abre um restaurante naquele lugar, com vista para as Singing Towers of Darilium; depois viaja até ao presente, onde já tudo está normalizado, e reserva uma mesa; logo a seguir viaja até ao futuro, para apanhar a vaga mais próxima, uns anos depois.

No final têm o momento perfeito. River, assustada com o futuro (ou falta dele), tem direito a mais uma surpresa: aquela é a última noite que passam juntos, mas a noite naquele planeta dura vinte e quatro anos. Do medo passa à alegria com a maior felicidade, e nós, fãs e espectadores, assistimos ao final feliz que a personagem realmente merece.

Só que lá está, todo este jogo entre passado/presente/futuro é muito mais digno de um Ano Novo do que de um Natal. Mas e então? Os episódios de Doctor Who de vez em quando conseguem atingir aquele grau de intemporalidade que faz com que histórias criadas e filmadas há cinquenta anos ainda sejam actuais hoje, ou simplesmente encaixem bem em qualquer altura.

Este episódio é um desses, sem sombra de dúvida. Infelizmente, ou talvez felizmente, e como não podia deixar de ser, ao focar-se em River e na sua relação com o Doctor, o episódio não conseguiu falar muito sobre o que vem aí. Com poucas ou nenhumas notícias sobre a décima temporada, The Husbands of River Song conseguiu ser um bom epílogo para a nona temporada, para a viagem emocional do Doctor, e para a própria River.

O futuro, esse, fica em aberto.

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso