Princípios Negros

18-09-2014 16:19

Com Peter Capaldi a suceder a Matt Smith no papel de Doctor, grande parte da publicidade focou-se na mudança de tom que a série ia sofrer. Numa tentativa de renovar o programa, como já é tradição em Doctor Who, e ao mesmo tempo acompanhar as novas tendências em que tudo é negro e violento, o Twelfth Doctor vem marcado à nascença como um “darker Doctor”.

Muito se especulou sobre o que é que isso significava exactamente, e Capaldi tem cumprido com quase tudo, até agora. Como referi no meu primeiro artigo (O Doctor resmungão), esta mudança faz todo o sentido: é a resposta adequada à última encarnação, o activamente pateta Eleventh Doctor, mas não agrada a todos.

Pessoalmente não tenho dúvidas de que a grande maioria das críticas vão morrer rapidamente, pois Capaldi é um bom Doctor, e ainda que os episódios até agora não tenham sido extraordinários, têm sido bons, e consistentes. Mas acho que é preciso mostrar às pessoas que esta encarnação, supostamente mais negra, é na realidade mais próxima das origens da personagem do que se possa pensar!

Nem falo do Sixth Doctor, a encarnação mais controversa, que teve o azar de não conseguir ter uma equipa criativa coerente por trás durante o seu tempo na Tardis, levando a que o plano de o “fazer nascer” agressivo e desagradável apenas para o ir suavizando com o passar do tempo – um plano que talvez seja parecido com o que existe para o Twelfth Doctor – não tenha sido bem sucedido.

Falo, isso sim, do First Doctor. Quando um programa tem mais de cinquenta anos, não é difícil que as pessoas se esqueçam de algumas coisas. Ainda por cima, no caso de Doctor Who, o programa esteve efectivamente parado durante uma série de anos, o que leva à existência de duas vagas de fãs completamente distintas. A mais recente dessas vagas, a que começou por conhecer o Doctor em 2005, com a cara de Christopher Eccleston, e na qual me insiro, muito provavelmente não viu os episódios antigos.

Ainda são, afinal, cerca de setecentos episódios, um bom pedaço ainda a preto a branco, e um filme, sem esquecer que há cerca de cem episódios perdidos, dos quais já só restam o áudio e algumas fotos. Por muito que se goste da série, ainda custa a ver, principalmente no início, quando começam a faltar episódios.

Eu que o diga. Já vi todos os episódios do First Doctor e estou quase a acabar os do Second, e digo-vos que é preciso muito amor à camisola para ultrapassar as reconstruções...

Isto tudo para falar exactamente de um dos primeiros episódios de sempre da série, parte da primeira história, An Unearthly Child, em que o Doctor, Ian, Barbara e Susan se vêem presos na pré-história e em problemas com uma tribo de homens das cavernas.

É aqui que acontece o caso mais flagrante da minha demonstração: a certa altura o Doctor tem intenções de matar um homem das cavernas! O Ian para-o, e ele arranja logo uma desculpa, mas é claramente visível o que é que o Doctor ia fazer.

E agora? Não só estamos a falar do Doctor, como estamos a falar do First Doctor, em 1963. Pois é. Na realidade, o Doctor nunca foi muito avesso a algumas mortes, e teve algumas encarnações um bocado mais agressivas que outras. Quando era William Hartnell a assegurar o papel, por exemplo, embora se tenha tornado progressivamente mais amigável e começado a agir cada vez mais como uma figura paternal para os seus companions, o Doctor era um bocado desagradável.

Sábio, com um coração de ouro (lá no fundo), e quase sempre disposto a salvar alguém ou a resolver algum problema, mas era também manipulador, antipático e altamente rezingão. Soa familiar? Parece que estou a falar do Twelfth, não parece?

Mas não desesperem, que eu ainda tenho uma explicação curiosa para isto. Se pensarem no assunto, este First Doctor, por muito idoso que pareça, é na realidade o Doctor mais novo que conhecemos. Ainda não sobreviveu a nenhuma guerra, nem teve um papel crucial no extermínio da sua própria espécie, não sofreu às mãos de Daleks, nem Cybermen, não viu companions a morrer nem a abandoná-lo, enfim, é um jovem! Um jovem que nos parece velho e sábio, mas que tem uma personalidade mais próxima do adolescente impulsivo e inconsequente do que do avô calmo e ponderado!

Claro que é preciso ter em conta a sabedoria real que este Doctor tem, pois não é propriamente novo e inexperiente, mas quando comparado com o Doctor de aspecto mais jovem, o Eleventh, que antes de regenerar tem cerca de dois mil anos, conseguem imaginar que o Doctor de Hartnell era um bocadinho diferente. Tinha de ser!

Continuando nas comparações, quem vir esses primeiros episódios e acompanhar o First Doctor, rapidamente percebe que a sua violência e agressividade nascem sempre no calor do momento, mais raiva e frustração do que propriamente ódio, ao contrário do que acontece com os Doctors mais recentes.

No Ninth não se nota muito, provavelmente por ele ser praticamente alérgico à violência, já que acabou de sair da Time War, mas no Tenth, principalmente mais para o fim da sua vida, é possível ver momentos de ódio, frieza e até crueldade. Quem é que é capaz de esquecer a expressão de David Tennant enquanto os castigos da Family são enunciados? Ou aquele que é provavelmente o momento mais negro – e o ponto mais baixo – da vida do Tenth Doctor, o final de Waters of Mars e o grito de Time Lord Victorious! ?

E o mesmo é válido para o Eleventh. A maior parte dos seus confrontos, especialmente com exércitos inimigos, baseia-se no medo que a sua figura impõe, por si só, e que ele explora com mestria, mas também tem momentos aterradores, ainda que talvez passem mais despercebidos, como a autêntica batalha/perseguição de A Good Man goes to War, em que o Doctor arranja, literalmente, um autêntico exército, sem se preocupar com o que vai acontecendo pelo caminho.

Vá lá!, o Doctor por esta altura tornou-se numa figura tão temida que há toda uma religião dedicada, única e exclusivamente, a matá-lo!

Capaldi continua na mesma onda, frio e cheio de ódio, que é incapaz de deixar para trás. Mas isto não é propriamente sinal de um novo rumo. Não há nada de novo em vê-lo deixar pessoas morrer para conseguir cumprir os seus objectivos, ou até em vê-lo a ele a cometer actos desses, como é sugerido em Deep Breath, com o Half-Face Man.

Mas esta evolução, digamos, não-linear, é grande parte daquilo que torna a personagem, e o programa, tão interessantes. Violento ou não, mais dark ou menos dark, venham daí os episódios!

 

Artigo da autoria de Rui Bastos integrante da equipa Whoniverso