Uma análise da oitava temporada I

04-01-2015 13:01

Finalmente com a oitava temporada acabada, incluindo o especial de Natal, está na altura de olhar para trás e ver o que se passou. Esta foi das temporadas mais controversas, mas também das mais consistentes e apreciadas pelo público. Representa um ponto de viragem na série, graças à mudança mais brusca de que há memória em termos de histórias e de temáticas, e também em termos de Doctor.

Este artigo é apenas a minha opinião pessoal, e como tal é relativamente parcial e deixa muita coisa de fora. Não vou mencionar tudo, nem em nenhuma ordem específica, mas vou, isso sim, falar daquilo que me marcou ao longo destes treze episódios.

Isto significa, por exemplo, que não me vou alongar demasiado sobre as controvérsias de um Master-mulher ou da representação da morte no programa, nem especular sobre se o Doctor ainda está a sonhar ou não. Não são coisas realmente relevantes, na minha perspectiva, especialmente quando há tanto para analisar neste Doctor mal-humorado e nesta Clara indecisa.

A segunda parte e última parte sai daqui a uma semana, portanto por agora, comecemos.

O novo Doctor

Com a partida de Matt Smith e a chegada de um Doctor mais velho, todos os fãs tinham algum tipo de expectativas para a décima segunda encarnação do nosso protagonista. Pessoalmente, queria que fosse realmente um Doctor mais velho, menos aleatório, e menos alegre. E o Moffat cumpriu!

Capaldi demonstrou ser um actor e um Doctor à altura: a série estava claramente a precisar de um novo fôlego, e a interpretação de Capaldi encaixou que nem uma luva nos argumentos da oitava temporada e fez exactamente isso. Nem toda a gente gostou, tão mal habituados estamos a ver um Doctor rezingão, e até rude, mas já o First Doctor de William Hartnell começou exactamente assim.

E mesmo que não existissem precedentes, toda a premissa do programa se baseia exactamente na constante mudança. As coisas na série estão sempre em fluxo. Seja o Doctor, a companion, os vilões, o tipo de história, o argumentista, tudo muda em redor da essência de Doctor Who, a única coisa estática: “a mad man in a blue box”.


Foi um verdadeiro risco, mas que me parece ter compensado. Esta temporada foi das mais consistentes desde o regresso em 2005 – e digo isto apesar dos meus problemas particulares com alguns episódios. Para isso muito contribuiu o Twelfth Doctor, imprevisível durante muito tempo e com uma evolução lenta, um ritmo completamente oposto ao Eleventh, que se deu a conhecer completamente em The Eleventh Hour, um episódio muito mais rápido, intimista e focado do que Deep Breath.

 

A “nova” companion

Já quanto à Clara, até parece estranho falar dela como uma nova companion, mas foi isso que acabou por ser. A Clara que conhecíamos até agora parecia ter sido escrita de propósito para o Eleventh Doctor, e a verdade é que encaixavam muito bem, o que já não acontece com Capaldi, até porque a personagem teve uma evolução de personalidade tão ou mais brusca que a do Doctor.


Na era de Matt Smith, a Clara começou por ser pouco mais do que uma parte do enredo. Não era uma verdadeira personagem, bem desenvolvida e com interesse. Era uma Moffat-girl, espevitadita, gira e engraçada, mas pouco mais. A sua importância culminou em The Name of the Doctor, no final da sétima temporada, quando salva o Doctor em todas as suas encarnações.

Esse momento explicou o seu estatuto de Impossible Girl, embora não tenha explicado tudo (parece que foi a Missy a esforçar-se para juntar a Clara e o Doctor, mas porquê exactamente?), e fez dela uma personagem de certa forma inútil. Já não tinha interesse para o Doctor. E isso nota-se no especial de aniversário, The Day of the Doctor, em que tem um papel tangencial e praticamente sem relevância.

Mas tudo muda em The Time of the Doctor, a despedida de Matt Smith. Aqui assume alguma importância, não só como contraste ao Doctor mas também como sua salvadora, no final. Neste episódio a Impossible Girl não só salvou o Doctor como o programa em si, ao fazer com que os Timelords desse um novo ciclo de regenerações a um Eleventh cansado e muito envelhecido.

Só que depois, com Capaldi... Bem, nunca mais foi a mesma. Ganhou interesse e densidade enquanto personagem, mas passou do oito ao oitenta. Se em The Time of the Doctor é um cachorrinho perdidamente apaixonado pelo Doctor, em Deep Breath é uma mulher ríspida e despachada. O seu lado de mandona e de moralidade duvidosa só se acentua no resto dos episódios, evoluindo a par do Doctor, de uma forma que me pareceu muito pouco natural. O que é uma pena.


Ainda por cima, e apesar de tudo isto, teve a oportunidade perfeita de sair em grande, no final de Last Christmas, mas continua para a próxima temporada, uma decisão que me soa estranha, mas que talvez dê alguns frutos.

 

As fundações

Nos primeiros cinco episódios, tudo parece conspirar para introduzir o Doctor, e por arrasto a Clara. São todos episódios bastante diferentes, que obrigam ambas as personagens a terem abordagens muito diferentes e a manterem interacções entre eles, e com outras personagens, também muito diferentes.

Em Deep Breath, por exemplo, o Doctor pós-regeneração, ainda por cima a mais violenta e explosiva de sempre, está tudo menos a cem por cento, e então é Clara que acompanhamos durante grande parte do tempo. O Paternoster Gang está sempre presente, naquela que até parece ser uma aparição desnecessária, mas que tem o propósito de rodear o espectador do máximo de personagens familiares para facilitar a transição para um Doctor praticamente oposto ao anterior.

E aqui vê-se já muita coisa. O Doctor não está muito interessado em Madame Vastra, na Jenny ou no Strax, e ignora-os ostensivamente. A sua preocupação é mais em perceber o que é que o seu cérebro está a captar que ele não está a perceber. Para isso faz coisas estranhas, dignas do Eleventh mas sempre com um toque novo e zangado.


Clara, por outro lado, passa o tempo todo desconfiada do Paternoster Gang, que a reconhece como a Clara de The Snowmen, embora essa ligação não seja minimamente explorada. O que Madame Vastra faz é com que Clara perceba que tem de aceitar o Doctor antes de realmente o ver como é – durante a cena do véu, uma das mais memoráveis da história recente do programa.

A silurian serve de paralelo para o Doctor, alguém em quem Clara não confia, por muito que o devesse fazer. É uma forma de ter a personagem a habituar-se ao novo Doctor – e por consequência, nós também – sem de facto interagir com o Doctor. É mais seguro, e acho que funcionou bem.

Depois tanto em Into the Dalek como em Robots of Sherwood, o que se pode ver é um Doctor que ainda não se encontrou a si próprio. Já ultrapassou o trauma de regeneração, mas ainda se está a situar. Ou seja, não sabe como lidar com tudo o que lhe aconteceu nos últimos tempos.

É por isso que fica tão empenhado em salvar o Dalek que acha que se tornou genuinamente bom. É por isso que se mostra tão desiludido quando isso falha e o Dalek lhe diz que ele sim é um bom Dalek. E é também por isso que se esforça tanto para superar Robin Hood, que acha que nem sequer existe!


E tanto num como noutro episódio, é visível a tendência obsessiva deste Doctor em provar que tem razão. Deve ser a encarnação mais parecida com o Sherlock Holmes que já vi. As semelhanças entre qualquer das encarnações e o famoso detective são mais do que evidentes, mas aqui temos um Doctor que tira conclusões assertivas a partir das primeiras, normalmente rápidas, impressões, e que depois faz de tudo para provar que tem razão.

A diferença é que Sherlock reconhecia com facilidade que estava errado, ao passo que este Doctor prefere continuar o seu caminho de forma fria e calculada do que desviar-se, tendo em conta novas informações. Se tem razão, tem razão, e há-de chegar à solução!

No meio disto tudo, onde é que fica Clara? Nestes episódios em particular passa despercebida, mas bem vistas as coisas sofre mais mudanças relativamente à Clara que vemos em Deep Breath e à que conhecemos da temporada anterior. Em Into the Dalek, “she cares so I don't have to”, diz o Doctor; serve de consciência, de componente humana que tanta falta faz a este Twelfth. E em Robots of Sherwood é uma donzela encantada com Robin Hood que rapidamente se desilude com a competição masculina entre ele e o Doctor, e passa a assumir um papel condescendente relativamente a ambos.

Tudo isto muda em Listen, em que a dinâmica entre os dois é muito mais normal para os padrões de uma companion, mas que tem um momento final poderoso e que mais vez dá uma relevância tremenda a Clara na vida do Doctor (e de Danny), que não mudou muito. Continua obcecado, de tal forma que chegamos ao final do episódio e ficamos sem saber se o monstro existia mesmo ou se tudo não passou de uma ilusão na cabeça do Timelord.


É um episódio fortíssimo e muito bem feito, pelo menos numa primeira impressão, pois quando se pensa bem é apenas mais uma adição à lista de medos primitivos criados pelo Moffat. Mas não deixa de ser um bom episódio, que corre o risco de se tornar um clássico da série.

Para concluir esta fase inicial da temporada temos Time Heist, um episódio muito peculiar e diferente de tudo o que a série já nos apresentou ao longo de mais de cinquenta anos. No meio de um monstro que é novamente uma adição à lista de medos primitivos do Moffat, duas personagens que são claramente companion-material, uma história convoluída como Doctor Who deve ser, e uma falha brutal no enredo (para quê tanta coisa em vez de aproveitar a tempestade solar para ir de Tardis até lá dentro?), os pontos importantes a retirar daqui são dois: a nulidade da presença de Clara, que pouco ou nada faz ao longo de todo o episódio, e a conclusão do Doctor quanto à pergunta que faz em Into the Dalek, sobre se é ou não um “good man”.

Não quer saber. Independentemente disso, ele não gosta daquilo que é. Este é um momento marcante na temporada e vinca muito bem esta nova encarnação, mais do que nunca consciente de tudo o que já fez e daquilo que é capaz, e não propriamente arrependido.


Por agora ficamos por aqui, mas já há muito em que pensar. A questão central da temporada parece ser a identidade do Doctor, não a sua verdadeira identidade, esse foi um problema resolvido com Matt Smith, nem a sua identidade esquecida, um problema resolvido por John Hurt, mas sim a sua identidade para si próprio. Após dois mil anos de viagens no tempo e no espaço, quem é o Doctor?

O resto da temporada guia-nos para uma resposta, umas vezes de forma mais subtil do que outras, mas de forma coerente e sem ser demasiado dramático, o que é uma boa mudança da era grandiosa e espalhafatosa do Eleventh Doctor. Eu cá gostei!

Artigo da autoria de Rui Bastos, membro da equipa Whoniverso